Uma breve discussão sobre apropriação cultural em um contexto simples
Hoje eu abri meu twitter e tinha um tweet da conta oficial da série Faking It com um gif falando “Não aguento esses momentos Karmy <3”, onde é basicamente as atrizes que fazem Amy e Karma pulando e rindo juntas. E daí?
E daí que Karmy é um nome de ship. Pra quem não sabe, a Brenda fez esse post muito bom explicando a arte de shippar. Mas isso significa que é o nome de Amy e Karma juntas como um casal criado por fãs que torcem para elas ficarem juntas como um casal. Casal de namoradas.
Ship é um termo que faz parte da cultura da internet, criado por fãs. O hábito de shippar faz parte da cultura de fandom.
Faking It é uma série que saiu mostrando a história de duas amigas que acabam fingindo que são namoradas para serem populares na escola, só que uma delas realmente passou a ter sentimentos reais. Isso é matemática básica para shippers. O nome Karmy surgiu, a torcida começou. se você acompanhava o fandom de Faking It, viu que a emoção da primeira temporada foi justamente ver se Karma e Amy ficariam juntas – COMO NAMORADAS. Se o ship Karmy teria validade. E a série joga com isso muito bem – foca nos sentimentos só da Amy (a que se apaixona), tem cenas de tensão e até beijos. No fim do dia, Karmy não rola porque a amiga Karma não sente o mesmo.
Ótimo. Beleza. Valeu.
Isso não impede ninguém de continuar shippando Karmy. Não há limites para um ship.
“Dana, mas o que isso tem a ver com apropriação cultural?”
O que acontece é que o marketing da série ficou consciente do ship. Ou pelo menos até onde eles estavam interessados. Porque eles começaram a se referir a Karmy, mas não como um casal de namoradas, como as duas juntas. Principalmente como amigas, já que esse é o relacionamento base delas na série.
Se você é fã shipper, você sabe que qualquer momento do seu OTP na série é um momento do seu ship, porque você está vendo um potencial romântico ali (Que pode existir de fato, ou não). Só que quando os criadores da série fazem uma cena do seu ship agindo como apenas amigos, e aí diz “olha aqui, é o ship!” Apenas: NÃO.
Consegue perceber a contradição? Shippar é ver as pessoas em um relacionamento romântico. Se você escreveu essas pessoas como amigas, você fez o contrário de shippar. E NÃO VAI USAR A PORRA DO MEU NOME DE SHIP PRA ISSO.
Eu não sei se os criadores ou o pessoal de marketing percebeu isso, porque… você precisa fazer parte da cultura de fandom para entender como funciona. Não é nem algo racionalizado que alguém escreveu as regras, simplesmente é o modo de agir natural que surgiu da prática ship e todo mundo que convive nesse meio entende. Se não entende conscientemente, consegue sentir a diferença.
Aí é que a parada fica sinistra. A diferença entre eu (+os fãs que shippam Karmy) e o pessoal da série, é que nós não temos voz. Se eu falar algo sobre Faking It, como estou falando agora, muito menos gente vai ver do que se o twitter oficial falar. O resultado?
Eles pegam algo que era meu, da minha cultura, usam de um modo errado e, como eles têm o poder de voz (=poder de tornar legítimo), eles fazem isso virar o novo certo.
Então eu sou roubada de algo que é meu, junto com o meu direito de decidir sobre o que é a minha cultura e ainda tenho o significado disso revertido e jogado na minha cara. Eles ainda fazem “sucesso” com algo que é meu.
Eu fico muito puta.
É uma mistura de impotência com raiva.
Toda vez que eu vejo eles fazerem isso, a vontade é de gritar NÃÃÃÃO. Apenas não. Karmy não é a amizade de Amy e Karma. Karmy é isso:
Aliás, não basta ser uma apropriação cultural de um nome de ship, é algo mais: homofobia.
Eu acompanho The 100. Um dos ships mais famosos da série é Bellarke (Bellamy com Clarke). É um ship totalmente platônico, os personagens nunca se aproximaram romanticamente na série. E daí? É um ship válido. Qualquer ship é válido. Só que ninguém nesse tempo todo, nem por 1 segundo, achou que Bellarke fosse uma celebração da amizade do Bellamy com a Clarke.
Peenis: Peeta com Katniss em Jogos Vorazes. Alguém acha que é um ship que celebra a amizade do Peeta com a Katniss?
Até mesmo em Faking It, tem o ship Kiam (Karma + Liam) e ninguém fica anunciando a amizade deles.
E isso é, inclusive, um problema comum enfrentado pela visibilidade de garotas namorando. Em paralelo, teve um caso recente da Kristen Stewart com a namorada em que por um tempo saíam fotos dela com a outra garota (sem ela ter dito nada publicamente), aí os sites de fofoca diziam “Kristen e sua amiga”. Ao ponto de virar um meme no tumblr: elas são só gal pals . Ironizando o fato de chamarem garotas namorando de amigas. “Mas, Dana, eles iam fazer o que? já ia partir do princípio de que ela tava namorando só porque tá do lado de uma garota?” Hm… não é exatamente o que eles fazem toda vez que uma mulher famosa aparece ao lado de um homem famoso? Taylor Swift que o diga. Enfim, isso de colocar o nome ship no nome da amizade acaba se encaixando em um contexto ainda maior de apagamento do relacionamento amoroso entre garotas, o que só piora.
Então você pega algo que não é da sua cultura, muda, usa a seu favor e, no processo, ainda invalida um relacionamento entre duas garotas.
Por favor, me diz que você se irrita com isso. Me diz que você vê o problema.
Se não, posso ser mais simples ainda: imagina que você chega em casa, vê um desconhecido usando sua roupa preferida e dizendo pra todo mundo que a roupa é dele. Pior: todo mundo acredita a ponto de você parecer o mentiroso. Aí ele ainda vai embora com sua roupa e você fica em silêncio igual a um idiota vendo tudo isso acontecer.
Toda vez que alguém reclama de apropriação cultural é alguém que não ficou calado. E se você desmerece o que a pessoa diz, você é aquele que tá deixando o outro sair com a roupa roubada pela porta.
Esse é só o início da conversa, na verdade. Eu tenho uma perspectiva do outro lado da moeda. Mas isso não tira o fato de que apropriação cultural é algo que acontece e é importante nós reconhecermos isso, porque é o primeiro passo para respeitarmos os verdadeiros donos. Pera. Mais do que isso. A questão da apropriação cultural é que ela não é apenas um roubo, ela acontece em um contexto em que a pessoa roubada não tem voz para assumir sua cultura (tipo eu que não posso fazer as pessoas verem que estão roubando meu nome de ship) e de quebra fortalece a opressão de uma minoria (como acontece com o apagamento do relacionamento amoroso entre garotas).
Já estou cheia de dúvidas e pensamentos para o futuro, mas por hoje é só.
Link legal sobre apropriação cultural:
http://everydayfeminism.com/2015/06/cultural-appropriation-wrong/