Há um tempo eu ajudei meu amigo a escrever sobre a Caitlyn Jenner e fiz um post no CC sobre o resultado, mas pra chegar naquela versão eu escrevi muito mais. Isso aqui é uma das versões que eu tinha guardado aqui e achei que valia a pena compartilhar. É sempre bom aprender sobre isso. 🙂
1- Confusão entre “gênero” com “sexualidade”
Sexualidade é atração sexual. Não é nem mesmo afirmar que “gosta de homem”, porque isso pode ser uma atração romântica. Tipos de sexualidades: assexual, heterossexual, pansexual, homossexual, bissexual;
Gênero é um assunto mais complicado, mas basicamente é uma “identidade” pessoal. As mais conhecidas são masculina e feminina (sistema binário), mas há outras e muitas pessoas se identificam como não-binário.
(em breve vou fazer uma série de textos sobre gênero aqui no CC)
2- Ninguém é mais ou menos trans dependendo da aparência ou de cirurgias
A definição de transgênero é: Uma pessoa que não se identifica com o gênero designado no nascimento.
É tão simples que eu não sei se dá realmente pra entender. Nasce uma pessoa e os pais a criam como homem, mas ela começa a perceber que isso não é quem ela é e não se sente confortável com essa definição de gênero – ta aí, uma pessoa trans. Não é algo que você escolhe, é algo que você é.
Acho importante dizer isso porque uma das coisas que eu vi foi algo tipo “pra se tornar mulher só falta uma cirurgia: a de retirar o seu pênis” e esse é o tipo de coisa que chega a doer. Não falta cirurgia nenhuma. O grau de “validade trans” de alguém não é medido por nada disso. Não é algo que precisa ser legitimado. Ser trans é quando o seu gênero designado não é o seu verdadeiro. Ponto. Ou seja, se um homem trans (uma pessoa que quando nasceu os pais criaram como mulher) passa de vestido e maquiagem na sua frente, ele não é menos homem por isso. E nem vai ser mais homem quando usar barba e bigode. Essas coisas são só representação (4).
3- Ninguém se “transforma” em outro gênero
“Mas, Dana, não tem aquele período que… a pessoa tá se transformando? Mudando de gênero?” Notícia do dia: TODOS NÓS PASSAMOS POR UMA TRANSFORMAÇÃO A VIDA INTEIRA. Nós estamos constantemente buscando coisas que nos representem e tentando mostrar isso pra o mundo. Tem um post ótimo da Bells que fala como roupa é uma forma de encontrar a própria identidade.
Acho que nenhuma imagem representa melhor que isso. Ninguém passa a ser “homem” ou “mulher” quando se veste de um modo, a pessoa já era antes disso.
A questão aqui é que nossa cultura é tão cis-normativa, que nem considera a possibilidade de criar as pessoas para descobrirem o próprio gênero, já enfia goela abaixo como você tem que ser. Enquanto isso, as pessoas que não se identificam com o que foi imposto acabam precisando se readaptar. E muitas vezes é uma adaptação perigosa e complicada. Por que você acha a Caitlyn Jenner só aos 60 anos foi sair do armário completamente? E ainda fez isso na mídia aos poucos? Se já é complicado descobrir normalmente quem você é e o que te representa, é mais complicado ainda quando o resto do mundo te trata como se fosse outra pessoa.
4- Ser de um gênero é diferente de como você representa o gênero
Quando você decidiu o seu gênero? Provavelmente nunca, porque decidiram isso no seu lugar quando você nasceu olhando o seu órgão sexual. Só que a nossa parte física não é o que determina o nosso gênero. Resultado: Muita gente tem um gênero diferente do designado quando nasceu. Essas são as pessoas trans.
Só que, de maneira bruta, nós aprendemos a ver gênero através de pênis, vagina, peitos, cor azul, maquiagens, tipos de roupa, etc. Esse é um detalhe muito importante: essas coisas não determinam o gênero de alguém, elas são só a representação.
O que determina o gênero de alguém? Acredito que só a própria pessoa pode dizer qual é a maneira que se sente confortável vivendo. Se você sente que é do gênero feminino, parabéns. Se você sente que nenhum gênero dentro da binária (masculino / feminino) te representa, vai em frente.
5- Falta entender que a nossa cultura é cis-normativa.
O que é cis? As pessoas cis são aquelas que se identificam com o gênero designado no nascimento. Eu sou uma mulher cis, porque me criaram como uma mulher e eu me identifico com o gênero feminino. Se eu sentisse que o meu gênero autêntico é masculino, eu seria um homem trans.
Uma cultura cis-normativa é a que trata como se a única possibilidade fosse ser cis. Tudo é criado – a linguagem, regras sociais de ir ao banheiro, etc – sem ter em mente a existência das perssoas trans. Isso nem é ensinado na escola. Então até mesmo escrever um texto (!) sobre uma pessoa trans se torna uma tarefa difícil.
6- Ninguém se assumindo trans vira uma “nova pessoa”
Não é uma “nova” mulher, não tá nascendo outra vez, não vai ser diferente. Não tem nem o que dizer direito, porque acho que esse medo vem da pessoa não entender que a pessoa trans sempre foi trans. E pode ter certeza: se chegou ao ponto de você saber, a pessoa já se identifica como trans há muito tempo. O anúncio é só a ponta do iceberg. Pode ser que agora você veja partes dela que ela manteve escondida porque não sabia se era seguro te dizer. Mas mudar? Nada. Ser trans só tem a ver com gênero, não com a personalidade ou…
7- A sexualidade de uma pessoa trans não muda
Sexualidade é diferente de identidade de gênero. Se a pessoa trans se sentia atraída sexualmente por homens quando vivia como homem, quando ela assumir que é uma mulher trans ela vai continuar se sentindo atraída por homens.
“Mas pera, se ela vivia como homem e tinha relacionamentos com mulheres, aí se assume mulher trans e continua se relacionando com mulheres…” – aí antes ela podia se identificar como hétero, mas na realidade ela sempre foi homossexual, porque ela sempre foi mulher. Na dúvida? Pergunte a pessoa. Se você não pode perguntar a pessoa, veja como a comunidade trans trata. Se a comunidade trans não tem nada a dizer, diga de acordo com o gênero dela – mulher trans. Mas pra que diabos você vai falar da sexualidade dos outros?
8- Ser trans não é só “trocar” entre homem e mulher
Além de ser cis-normativo, nossa cultura é baseada na binária de gênero, ou seja, a ideia de que só existem dois gêneros: masculino e feminino. Não é verdade. “Na verdade, a comunidade transgênero também inclue pessoas que acreditam que não têm gênero, que têm vários gêneros, que o próprio gênero é fluido e outros gêneros fora da binária.”
A definição de gênero é uma questão cultural e, dependendo da cultura, há outras formas de gênero. Mas por hoje vou apenas dizer que ser “mulher” ou “homem” não são as únicas duas alternativas. Procure sobre as pessoas não-binárias.
9- Roupa não tem gênero. Ou não precisa ter.
Uma roupa não precisa ser “de mulher” ou “de homem”. Uma calça é o que? Roupa de quem? E por que homens não podem usar saias, o que eles fazem em diversas culturas? Ficar dizendo coisas como “vestiu roupa de mulher” não só reforça uma limitação de gênero, como passa a ideia errada de que pra ser mulher você precisa vestir aquele tipo de roupa. É algo que eu estou tentando banir da minha vida. Fica aqui a sugestão.
10- Que tal não falar sobre o que há embaixo da roupa da pessoa?
“Vou falar de forma simples: Nunca pergunte uma pessoa transgênero qual é aparência do corpo dela por baixo das roupas.”
É invasivo, é desconfortável, é falta de respeito. Falar sobre cirurgias que a pessoa fez também. Se ela se sentir confortável pra falar, ela vai falar com você. Não interessa o que a Caitlyn Jenner fez com o próprio corpo.
11- As palavras que você usa na hora de falar
Palavras transmitem muito da forma como a gente pensa e fomos treinados para não pensar nas pessoas trans. Lendo o texto do Vics a principal coisa que eu fiz foi passar um filtro nas palavras – e eram tantos detalhes que eu nem sei se consegui ver tudo. Mas aqui algumas observações.
O principal era a ideia constante de “tá virando outra coisa”, com expressões que indicam mudança tipo “agora é”, “tornou-se”, “virou” e “mais nova integrante da familia”. Caitlyn Jenner não está se tornando nada, ela é uma mulher e sempre foi, o que ela está fazendo agora é compartilhar isso com o mundo.
A ideia de que “falta” agora para ela concluir a sua “jornada” trans ou até mesmo que é válida, com expressões tipo “certeza da legitimidade”, “falta uma cirurgia” e “mas para todos e qualquer efeito”.
Palavras que mostram de forma negativa ser trans, fazendo referência aos momentos de autoafirmação usando “escândalo” e “problemas”.
A separação entre a parte em que ela vivia como Bruce Jenner e agora que ela é livro como “seu eu feminino” e “seu eu masculino”, que dá a ideia de que ela tem esses dois eu, enquanto é mais como uma fantasia que ela usou até descobrir que podia viver da forma que queria.
Essas são só algumas coisas, a nossa língua é um campo minado. E eu percebi que isso não é algo que você “corrige” aprendendo apenas qual é a forma certa de falar, você aprende a falar de uma forma melhor quando passa a entender as coisas.
12- Respeitar o pronome
Basicamente, respeitar se a pessoa quer ser chamada de “ela”, “ele” ou da forma que for. Também o nome que a pessoa usa – se ela diz ser Caitlyn Jenner, ela é Caitlyn e não Bruce. Se tá na dúvida do que usar, pergunte a pessoa. Apenas ela e somente ela vai poder te dizer como quer ser chamada. Novamente: se não sabe, é a lógica de uma pessoa normal. Como você fala de mulher? É o mesmo para uma mulher trans.
Um desafio no texto foi porque ele queria falar do período em que ela viveu como Bruce Jenner sem confundir o leitor. Então usou os pronomes masculinos e esse nome, até o ponto que fala sobre a afirmação dele como Caitlyn e mulher. Pessoalmente, eu teria usado feminino em tudo, mas eu não sei de detalhes exatos sobre o caso para saber o que ela prefere e, para piorar, é algo recente, então tem muitas informações misturadas de momentos que ela lidou de forma diferente com a sua identidade.
13- Respeite a pessoa trans, aprenda sobre o assunto e continue a nadar
No fim, só a pessoa trans pode dizer o que prefere. Cada pessoa passa por uma experiência única. também no meio disso: a importancia de se aprender a falar sobre o assunto