Eu fiz esse resumo do que tem acontecido com The 100 e a internet nos últimos dias, aí eu fiz um resumo desse resumo pra o ConversaCult, mas já que eu tinha toda a explicação pronta, vou postar aqui:
obs: fonte da imagem de capa site LGBTfansdeservebetter
Pera, o que aconteceu na internet com The 100?
The 100 é uma série da CW, que na segunda temporada fez a protagonista bissexual ter uma relação com uma outra personagem lésbica, Lexa, que é tipo a rainha do planeta. São duas personagens mulheres jovens e líderes e guerreiras (…) que por si só são muito bem desenvolvidas, é como se você tivesse duas Rey numa história. Já é lindo ver só sobre isso. Mas aí elas vão lá e têm um romance complexo qUE É TIPO UMA DAS MELHORES REPRESENTATIVIDADES DE CASAL ENTRE MULHERES QUE JÁ EXISTIU. Mas aí no episódio 3×07 acaba que uma delas, a Lexa, é só um recurso de roteiro e eles matam ela de qualquer jeito, logo depois delas finalmente encontrarem a felicidade juntas. #drama #shockvalue
O resultado é que os fãs decidiram não ficar calados diante das injustiças e invadiram as redes sociais pra comentar o caso. Isso já faz 10 dias, cada vez mais os fãs estão mais organizados e mais repercussões acontecem. Aqui nesse texto sobre o que tem acontecido, escrito 11 de março, eu fiz uma lista de coisas que os fãs já fizeram:
Aqui algumas coisas que fizemos essa semana:
-Tiramos 15 mil seguidores do showrunner no twitter, fizemos a audiência do episódio dessa semana cair, as notas do episódio no IMDB são as menores, as views nos trailers do episódio da semana despencaram e o número de dislikes é 3 vezes maior.
– Fizemos um trailer fanmade para um filme com as atrizes de The 100 ter mais views que o trailer da semana
– O fandom se transformou em um gigante writer’s room e nasceu a personagem Elyza Lex, que até o momento que eu escrevo já tem 73 histórias sobre ela só no AO3. Mas já tem fanarts, vídeos e mais 2398329382 de coisas.
– Fugiu para a série Fear The Walking Dead, trabalho atual da atriz que faz a Lexa (e já basicamente estamos chamando atenção pra o fato de que queremos que ela tenha uma namorada na série) (isso era piada, mas até os produtores já viram) (meio que nós tomamos conta do fandom da série, que era pequeno…)
– Arrecadou 34,476 para o The Trevor Project, uma organização americana que trabalha com serviços de prevenção a suicídio para jovens LGBT+
– Colocou várias tags no TT ao longo da semana, algumas por acaso. LEXA DESERVED BETTER, LGBT FANS DESERVE BETTER, ALYCIA WANTED TO COME BACK, ALYCIA IS OUR COMMANDER, WATCH ALYCIA ON FTWD (teve mais, mas eu esqueci)
– Chamou atenção de mídia internacional e da indústria pra merda que aconteceu
Por que isso aconteceu?
(versão resumida, porque a completa eu ainda vou levar algum tempo pra escrever)
1- The 100 já tinha problemas pra começo de conversa, mas a gente ignora porque acredita que eles querem melhorar
The 100 é uma série legal como muitas outras (era a minha preferida, pra falar a verdade), mas como é comum em absolutamente tudo na cultura pop, tinha problemas de representatividade, coisa racista, heteronormatividade, apagamento LGBT+, machismo… Agora, o que séries/filmes não tinham feito como The 100, era ter ido além.
The 100 é uma história de sobrevivência protagonizada por Clarke, uma garota. Você tem várias mulheres importantes – Abby, Octavia, Raven, Lexa, Anya, Indra… Enfim, no @conversacult eu já escrevi bastante sobre como The 100 dá um passo além na representatividade. Até mesmo em questão de etnias, mesmo que não seja perfeito, eu dificilmente vejo uma história onde você tem, de fato, personagens importantes como The 100. Essa é a merda sobre representatividade: se você vai analisar a sério, você dificilmente vai encontrar algo próximo do ideal. Então o resultado é que a gente acaba aplaudindo quem dá um passo a frente, não quem é perfeito.
A gente aplaude quem está tentando fazer alguma mudança, e realmente parecia que The 100 tava fazendo isso.
2- No episódio 3×07, ficou claro que não, eles não estão dando um passo a frente.
The 100 deu 50 passos atrás e provou que a impressão de que eles estavam fazendo algo era uma mentira. Isso muda a perspectiva sobre tudo o que eles fizeram na série até aqui, e o que eles podiam fazer melhor no futuro. Mas não é o bastante, porque isso nos leva a…
3- Se era uma mentira, eles fizeram queerbait*.
Todos aqueles textos que o showrunner Jason Rothenberg e outros escritores compartilharam sobre a série ser “progressiva”, e o crescimento que a série teve nos últimos meses por isso, são uma prova de que eles usaram a “”preocupação”” com minorias pra se destacar.
Queerbaiting: Em inglês existe o termo “queerbait” que é tipo “isca pra atrair gente LGBT+”. É tipo a Madonna beijando a Britney só pra criar polêmica e ganhar audiência. Existe várias formas de queerbait, mas é basicamente gente usando representatividade LGBT+ pra ganhar popularidade. No caso de The 100, eles usaram a relação Clexa pra atrair gente assistindo e mostrar que a série é progressiva. Tipo, eles literalmente usaram isso. Essa foto acima o Jason postou durante a gravação na finale, enquanto todos ali sabiam que a Lexa já estava morta. O Jason chamou fãs pra assistirem a gravação da finale. Quando um fã que falou que tinha medo da morte da Lexa, o Jason respondeu que ele estava “vendo coisa demais onde não existia”, enquanto Jason já sabia que a Lexa ia morrer. Eles são só alguns exemplos, o twitter @the100receipts começou fazendo uma lista de “comprovantes” de toda a esperança que os escritores deram.
A questão é: pf, não poste a foto das atrizes comendo docinho de arco-íris quando uma das personagens já está morta e você não parou pra considerar o que isso significa pra comunidade LGBT+.
obs: pera, Lexa na finale? Lexa tá viva? Não, a consciência dela tá naquela realidade virtual onde a Clarke vai entrar e elas vão se encontrar lá. E no fim vai morrer outra vez quando as inteligências artificiais forem destruídas, a não ser que o Jason esteja mudando tudo desesperadamente agora.
Pessoalmente, eu acho que isso foi um terrível acidente que aconteceu porque o Jason estava cegado pelo privilégio. Pensa como é antes de descobrir o que é feminismo, todas as merdas que a gente diz sem saber. É uma situação frustrante, porque você não tem nem como saber, você não viveu a experiência daquelas pessoas. Só que…
4- Aqui uma lista de 65 138 personagens lésbicas e bissexuais que foram vítimas dessa cegueira. Eles sempre matam, e eles sempre acham que é justificado.
A imagem abaixo diz que, de acordo com o GLAAD, de 1.000 papeis com personagens que tem fala na TV nos EUA, num ano bom apenas uns 20 são de lésbicas. Entre Janeiro e Março de 2016, 5 já estão mortas, 2 estão desaparecidas e 1 mulher transgênero também foi assassinada.
Isso significa que basicamente de 1000 personagens, você tem tipo só umas 15 personagens lésbicas vivas na tv nos eua se 2016 for um ano bom. E isso não considera se ela é bem escrita, se é interessante, se ela tem destaque.
5- Uma coisa é ser cego pelo privilégio, outra coisa é ser avisado e ignorar. Foi o que o Jason fez.
“Eu nem quero falar sobre o trope* que tem sobre personagens LGBT; não é algo que nós consideramos quando tomamos uma decisão” –Jason Rothenberg, tvinsider
O escritor do episódio 3×07, Javi, falou que eles sabiam do trope Bury Your Gays, ou mais simples: o fato de que a garota lésbica sempre morre.
Trope é um padrão de escrita que sempre se repete. Por exemplo, Donzela em Apuros, se referindo a todas as vezes que você tem a mocinha presa e precisa ser resgatada pelo herói. Um trope não é necessariamente ruim, mas alguns refletem uma forma de pensar problemática e, no caso de minorias, se transformam em nocivos porque são o único tipo de representação que essas pessoas recebem. A garota lésbica sempre morre. Da mesma forma que você espera que a mocinha e o mocinho fiquem juntos em todo final do filme, você espera que a garota lésbica morra – isso é, no mínimo, bizarro. Pra piorar, isso também entra em um contexto maior de invalidação e apagamento da comunidade LGBT+.
De certo modo, quando você mata uma garota lésbica na televisão, você está dizendo pra garotinha lésbica no mundo real que ela não pode existir nem ser feliz. Você está dizendo que esse é o único tipo de realidade pra ela.
Mas sabe de uma coisa? Talvez você esteja pensando que isso é um absurdo. “MAS ELA É SÓ UMA PERSONAGEM!!! QUE GENTE DRAMÁTICA!” E é difícil entender mesmo, porque a gente não tem >poder de voz< pra você acreditar que isso é verdade. E é tudo bem não entender, erros acontecem, mas…
6- Jason está ignorando tudo
A forma que o Jason tá reagindo a tudo isso também piora a situação. O que ele tá fazendo é basicamente ignorar, dar RT em artigos que concordam com ele, uma vez chegou a dar RT num tweet de uma mulher dizendo que o pessoal tava fazendo bullying (e aí apagou rapidamente, porque deve ter percebido a merda).
Sabe aquela pessoa que tá sendo babaca, você avisa que ela tá sendo babaca e ela diz “não acho” e continua sendo babaca?
Nem mesmo perdendo followers, nem mesmo com os trendings, nem mesmo com o escritor do episódio em si assumindo que cometeram um erro e vários escritores da série falando indiretamente que teriam feito de outro jeito. Eu sei que é uma situação complicada, mas ele não deu o menor sinal de parar pra ouvir ou tentar entender. Enquanto isso, ontem saiu um artigo na Vanity Fair, e nele uma crítica mostra que mesmo estando de fora do fandom, parando pra ouvir ela foi capaz de entender bastante.
Resumindo: Jason foi um babaca e teve toda oportunidade de deixar de ser, mas continua insistindo. Por quê?
7- Problemas internos com atores começaram a vazar
Pra completar, a reação do fãs tem dado força pra mais gente reagir. O ator que faz o Lincoln, o Ricky Whittle, já há algumas semanas têm mandado indiretas para o Jason (sobre não poder postar fotos durante as filmagens ou não abaixar a cabeça diante de quem faz bullying, por exemplo). E uma vez a mãe do Ricky foi até o twitter dizendo que o Jason fez bullying com o Ricky. Esses dias, durante a Survival Con, ele conversou com fãs e contou que o Jason fez o Lincoln ser preso de propósito na série pra ter o mínimo de tempo em cena possível, e todo mundo já espera que o personagem vá morrer até o fim da temporada. A própria Lindsey Morgan, atriz que faz a Raven Reyes, também contou sobre a maneira que foi tratada durante a primeira temporada e que “todos nós temos algo a dizer sobre o Jason”.
Tem mais coisa ainda, muita merda foi jogada no ventilador. Se a Raven não morrer nessa temporada, e se as coisas continuarem do jeito que estão, é capaz da Raven morrer na próxima – e isso é uma prova de como eles silenciam os atores que tentam fazer algo quanto a injustiças.
8- Impacto negativo real na vida das pessoas LGBT+
E tem toda uma camada extra sobre o impacto da morte da Lexa, da forma que aconteceu, na vida das pessoas que assistem a série. Algumas pessoas me perguntaram OS ESCRITORES DA SÉRIE POR ACASO MATARAM ALGUÉM REAL? Praticamente. Pessoas LGBT+ são sistematicamente oprimidas, são vítimas de violência reais na rua tipo assassinatos e espancamento movidos por homofobia, mas não se engane, essa não é a única violência. Existe uma censura tóxica que faz as pessoas LGBT+ viverem escondidas e viverem pela metade.
“A violência rela, a violência que eu percebi que era imperdoável, é a violência que nós fazemos com nós mesmos quando percebemos que temos medo de ser quem nós somos.” Nomi, em Sense8
Eu acabei de perceber que esse trecho é meio problemático, porque coloca a culpa na própria pessoa LGBT+ por ter medo. E ela tá falando isso pra o Lito, personagem gay, que tem medo de assumir o relacionamento com o namorado pra não atrapalhar sua carreira de ator. (=ele tem medo de por ser quem ele é, ele perder a carreira) A própria atriz Ellen Page cita ter tido o mesmo medo por dizer publicamente que é lésbica. A apresentadora Ellen DeGeneres já falou sobre como seu programa ou algo assim foi cancelado quando ela falou publicamente que é lésbica (aí mais tarde ela deu a volta por cima…).
O que importa aqui é que sofrer consequências negativas, de rejeição da família, passando por perder o meio de sustento até a própria morte, são perigos reais que a comunidade LGBT+ enfrenta.
Aí eles vão em The 100 e fazem uma história onde uma figura “paterna” da Lexa não aceita o relacionamento dela com a Clarke, ameaça, e logo depois que Lexa encara ele e finalmente encontra seu momento feliz com a garota que ela ama, ela morre. As cenas foram cruelmente colocadas em sequência. Lexa e Clarke fazem sexo, em seguida Lexa morre com uMA BALA PERDIDA.
Não foi por ela ser lésbica, mas tem querer ser muito cego pra ignorar a mensagem que isso manda pra os jovens LGBT+ assistindo.
E isso ainda teve consequências reais, mexendo com pessoas que já tinham depressão, ansiedade, servindo como gatilho pra ataques de pânico e muitas outras merdas.
Para essas pessoas, é como se os escritores tivessem realmente machucado fisicamente elas. Eu tava conversando com o meu irmão e se qualquer pessoa faz algo que causa efeitos de trauma psicológico em pelo menos umas 15 mil pessoas, você chama isso de ataque terrorista. E, novamente, é claro que não foi a intenção ou não é tão simples assim, mas o fato aqui é que representatividade tem um impacto devastador na realidade e já passou da hora de escritores se responsabilizarem por isso.
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CONCLUSÃO
Ou seja, aconteceu muita merda e ainda tá acontecendo muita merda. Acho que por muito tempo escritores (e pessoas que criam filmes/séries/livros/músicas) viviam em uma bolha de privilégio onde eles só falavam sobre o que interessava a eles mesmo e viviam no mundinho iludido onde a ficção não tinha impacto na realidade, era só “uma série” (“é só entretenimento!”) (e isso nem é verdade, porque se você estuda teoria da comunicação há faz alguns anos que teóricos estudam o poder da propaganda nas pessoas, e todo tipo de arte funciona como uma espécie de propaganda) (ENFIM.). Só que a internet tá dando espaço pra minorias se expressarem e mostrarem que ficção tem um poder muito maior no mundo real, que para alguns de nós isso não é só a história de um cara heróico salvando o mundo, pra nós é a chance de existir e ser validado em uma cultura que nos exclui. Representatividade é o caminho mais rápido pra ser incluido nessa cultura. Só toda a indústria cultural é dominada por homens brancos cis hétero (mesmo quando você tem mulheres e pessoas de outras minorias elas não têm o poder de falar contra sem perder o emprego) que não conseguem e se recusam a parar pra entender a perspectiva das minorias.
Jason é um exemplo de um deles.
E através dele nesse momento nós temos a chance de mostrar pra todos os outros que nós estamos aqui e NÓS IMPORTAMOS.
Nós merecemos ser bem representados.
como nós estamos fazendo isso?
1- Dando unfollow no Jason https://twitter.com/JRothenbergTV
2- Aprendendo sobre o assunto e explicando pras pessoas o que está acontecendo
3- Os fãs fizeram um dossiê mostrando passo a passo como o uso da Lexa e do relacionamento Clexa foi usado pela série pra ganhar fama http://wedeservedbetter.com/
4- Juntando dinheiro pra o Trevor Project, que trabalha com prevenção de suícidio para jovens LGBT+ nos EUA http://www.lgbtfansdeservebetter.com/
5- Isso tudo são iniciativas de fãs, pessoas como você, que não decidiram ficar caladas. Então se você ver uma forma de ajudar, de chamar atenção pra causa, você pode fazer isso.
6- Ações em tempo real:Aqui no Brasil a melhor opção é o Clexa Brasil, pra poder acompanhar o que o fandom está planejando:
http://clexabrasil.tumblr.com/ x https://twitter.com/Clexa_BrasilEu também vou continuar no twitter @danagrint comentando os acontecimentos e estou preparando um apanhado geral.
Se você tiver alguma ideia, pode falar comigo.