(Eu escrevi isso em uma mensagem pra minha amiga)
É que naquela conversa sobre Supergirl eu falei que Sanvers tava ali pra ser gay e você me perguntou “e qual o problema?” – eu sei que eu já falei isso no email, mas aconteceram algumas coisas que me fizeram pensar.
Tipo, a questão não é ser problema ser gay – não, isso é lindo, desejado, coloca mais que tá muito pouco. O problema é quando os escritores não conseguem ver além de “ser gay”. É tipo, é o equivalente na ficção de falar “vamos colocar uma bandeira de suporte aqui”, aí todo episódio que você assiste tem uma bandeirinha LGBT+, mas ela não faz nada e, quando você compara com os outros personagens e tratamento de outras relações, fica claro que os escritores não enxergam da mesma maneira ser gay, não é algo “normal”, não é visto como igual. Os escritores não sentam e “vamos criar uma história e essas pessoas são gays” é mais tipo “vamos escrever a história. pronto, agora onde dá pra enfiar uma bandeirinha?”
Daí veio a comparação com Supercorp, que é um shippão da porra, mas não recebe tratamento romântico. Por quê? A única resposta real disso é heteronormatividade.
(“Como você pode deixar subentendido que a Lena encher o escritório da Kara de flores em um episódio é “platônico” (só amizade) e no episódio seguinte encher a casa da Kara de flores como um gesto romântico?”)
O mesmo, inclusive, serve pra o caso do James. Ele era uma bandeirinha “negra” ali. “Wow, vamos ser revolucionários e colocar a Supergirl apaixonadinha pelo cara bonitão negro”. E essa é uma das razões de não funcionar – eles não estavam tentando criar uma história, eles estavam tentando enfiar uma bandeirinha ali.
Discutir a questão da Kara na série é um outro tópico, então vamos voltar pra parte LGBT+, ou pelo menos a que eles tentam fazer intencionalmente.
O que a Maggie faz na história? Qual é a história dela? Existe alguma razão pra ela estar ali a não ser servir a Alex?
E pelo que eu tenho visto, até a Alex tá menos envolvida na história. Ela tem um arco além de “sou gay”?
Novamente, ainda é foda pra caralho que essas personagem existam, eu não tô criticando isso. É um fato que a gente precisa que os personagens pelo menos existam e isso é positivo.
Mas não dá pra parar aí.
A questão está no desenvolvimento. Tipo nesse episódio de Dia dos Namorados. Eles jogam ali o passado da Maggie que é um drama complexo, mas aparece como um detalhezinho só pra causar confusão nos planos da Alex de ter o dia dos namorados perfeito. E o pior? Ainda retratam a Maggie como errada, ela é que precisa correr atrás pra corresponder à versão idealizada da Alex de dia dos namorados.
No fim das contas não tem desenvolvimento, é só um fato curioso/drama gay™ pra fincar a bandeirinha de “tratamos de questões importantes”, sem realmente fazer nada.
(e se contar o fato de que a Maggie se define como “não branca” na série, isso é pior ainda. A garota branca é aceita pela família, sai do armário de forma emocionante, é tudo lindo; A outra é tragédia, mal desenvolvida, ainda pede desculpa por sofrer com isso em vez de satisfeito as vontades da garota branca)
E isso se torna pior ainda quando a gente pega o contexto no mundo real:
Eles anunciaram a Maggie antes da temporada, todo mundo já sabia que Sanvers ia acontecer antes da estreia (e, cá entre nós, a Maggie, o Super-homem e o Mon-El são tentativas de atingir diversos públicos). Depois que a Alex e a Maggie ficaram juntas os ratings da série subiu. As atrizes estão por todo lado falando da causa e fazendo aqueles atestados de LOVE IS LOVE, sendo que parece que nenhuma delas é queer???
E o que é a parte mais importante: você chegou a ver como divulgaram esse ep de dia dos namorados?
Anunciaram que ia ser um episódio “sanvers-centric” (centrado em Sanvers) e que ia “conhecer o passado da Maggie” – aí todo mundo chega lá e é tipo 5 minutos de um episódio de 45?? O passado da Maggie é uma frase mal desenvolvida???
Eles 1) Atraíram as pessoas prometendo algo LGBT+ 2) usaram isso pra ganhar views 3) não cumpriram
Essa é a definição de queerbait. E dá pra ver isso pela forma como os fãs ficam. As expectativas subindo, o pessoal chegou a colocar uma tag de SANVERS VALENTINE sei lá nos trendings mundiais, e no episódio em si não era nada demais. Pior ainda, o episódio centrado no casal f/f passa a maior parte do tempo desenvolvendo o casal f/m.
A Kara pode ser a protagonista, mas tem algo muito errado aí se você publica que o episódio vai ser centrado no outro casal e dá só 5 minutos de tela. E todas as mensagens implicitas aí? O episódio centrado na pessoa LGBT+ é todo sobre a pessoa hétero. Não gosto nem de pensar muito nisso porque é desumanizador.
Então no fim acho que o problema não é “ser gay”, mas “estar ali só pra ser gay” e de jeito nenhum a solução disso é “se é só pra ser gay não coloca”, mas sim “vamos realmente aprender a ver os personagens além de ser gay.” Porque tipo, se a intenção é real mesmo de fazer algo bom e dar suporte, qual é o problema de parar pra discutir e aprender a como fazer melhor?
Acho que às vezes as pessoas tem boa intenção e elas querem ganhar um prêmio pela boa intenção, sem de fato fazer nada. O cara fez o básico que é lembrar que que gente LGBT+ existe? Wow, ninguém pode falar nada.
E o resumão geral aqui é que: os escritores de Supergirl claramente não veem relação de mesmo gênero como igual. E eu sei que tem uns deles gays sei lá, mas isso não livra ninguém de ter esses padrões internalizados. Inclusive, ninguém é livre disso. Literalmente todo mundo precisa desconstruir essas coisas que a gente aprende pra buscar fazer algo mais saudável.
obs: essa metáfora da “bandeirinha gay” e “colocar ali só pra ser gay” em discussões sobre representatividade normalmente é chamado de token. O que é token? Um bandeirinha gay é o token. É tipo um símbolo pra representar algo. Acontece muito quando colocam o “melhor amigo negro” nas histórias.