Eu encontrei uma história que eu escrevi com 14 anos e, pra minha surpresa, eu fazia o trope Bury Your Gays (um personagem gay morria). Aí eu fiquei pensando, por que as pessoas ficam repetindo essas histórias onde personagens gays morrem?
A resposta simples é que: grupos minoritários se tornam símbolos na ficção, e ser gay é símbolo de “não poder amar quem você pode amar” na nossa cultura, que em si é uma tragédia (o personagem que não pode ter o que quer), e essa simbologia se traduz nas 2398239823 histórias trágicas que dominam a representatividade LGBT+.
Já a resposta onde eu explico como eu cheguei a conclusão disso tudo até abaixo.
Então, eu tava escrevendo sobre zumbis, sobre como eles meio que representam a ideia do “outro” na ficção. E além da versão básica de todas criaturas – wow, vampiros são mortos-vivos importais que precisam de sangue pra viver! Vamos pegar uma estaca e nos proteger! – existe a dimensão simbólica do uso dessas criaturas. Eles representam algo, que mesmo sem perceber, a gente entende e quando escreve histórias trabalha com esses símbolos. Às vezes a mera razão de usar uma certa criatura é porque nós somos atraídos por um conceito. Dificilmente é um processo consciente, mas acontece mesmo assim.
De certo modo, pensa numa “criatura mitológica” como uma palavra – eu escrevo “casa”, estou representando a ideia de uma casa. Mas o que é uma casa? Pode ser o lugar onde alguém mora, pode ter aquele sentido de “lar”, “o meu lugar”, “o espaço que é meu”, “onde fica uma família”, “um tipo de construção”. Então por trás da palavra a gente tem 239823 conceitos inconscientes associado ao uso de casa na nossa vida. O mesmo acontece com criaturas mitológicas ou coisas tipo superpoderes, só costuma ser um pouco mais complexo pra entender abertamente.
Agora, vamos falar de personagens LGBT+.
Apesar de pessoas LGBT+ não serem criaturas mitológicas, no cotidiano praticamente são. Um monte de gente hétero nunca nem tem (ou sabe que tem) uma pessoa que não seja hétero por perto. A gente cresce conhecendo tanto sobre pessoas LGBT+ quanto se sabe sobre dinossauros ou bruxos. São conceitos abstratos que a gente até entende, mas não fazem parte da nossa realidade.
Acho que é importante refletir que muita gente só lida com pessoa LGBT+ como se fosse um conceito mesmo, apesar de gente LGBT+ existir. O conceito popular de ser LGBT+ é tão distante da realidade que as próprias pessoas LGBT+ não percebem que são e ainda precisam lidar com o que é vs. esse conceito popular.
O “e daí?” é que considerando isso, dá pra refletir como pessoas LGBT+ são tratadas na ficção em paralelo com isso de seres fictícios.
Do mesmo modo que esses seres representam conceitos, se tornam “símbolos” de algo, as pessoas LGBT+ no imaginário popular também.
A falta de histórias diversas e que humanizam o grupo permite criar o que Chimamanda Ngozi Adichie chama de “história única”, o que forma estereótipos, e meio que cria uma ideia geral sobre um grupo e permite que ele se torne símbolo de uma ideia na nossa cultura, em vez de seres humanos sendo apenas seres humanos.
Muitas vezes, quando as pessoas usam gente de um grupo minoritário numa história, eles não estão usando “a pessoa”, eles estão usando o símbolo daquele grupo. Por exemplo, acontece demais em história de ficção científica que são protagonizadas pela Mulher Experimento. São histórias tipo Ghost In The Shell, A Menina que Tinha Dons, Lucy, Ex_Machina: Instinto Artificial – ou qualquer uma onde existe uma pessoa que é superpoderosa, robô, meio monstro, qualquer coisa que seria “destruídora” ou “não humana”, só que eles querem discutir justamente a humanidade desse ser – e é aí que entra a mulher dando rosto a essa criatura, porque “Mulher” funciona como símbolo de sentimentos, fragilidade, etc, então é usado pra constratar a imagem e questionar.
Você pega tipo Robocop, Exterminador do Futuro ou qualquer história que homem tá no mesmo lugar – dificilmente busca discutir o lado humano/fraco da criatura, tá ali pra outras coisas.
Conscientemente ou não, a gente entende os significados e faz uso desses símbolos – e muitas vezes esses significados são construídos com base em preconceitos da perspectiva privilegiada sobre o grupo em questão, como no caso da Mulher Experimento.
Isso é um problema, como estereótipos e história única são um problema, mas essa conversa toda começou quando eu li uma fanfic que eu escrevi com uns 14 anos onde eu fazia o trope Bury Your Gays (matava o personagem gay) e eu fiquei pensando: de onde eu internalizei esse padrão?
Não podia ser tanto de histórias (filmes, livros, jogos, etc), porque dava pra contar nos dedos de uma mão a quantidade de histórias com alguma representatividade LGBT+ que eu vi. Então eu comecei a me perguntar se isso não foi internalizado de outra forma – não apenas dos estereótipos perpetuados na ficção, mas também dos estereótipos que a gente perpetua no dia a dia. Principalmente, da nossa visão do que é “ser LGBT+” na nossa sociedade.
Foi a partir daí que a ideia de grupos como símbolo começou a fazer mais sentido pra mim.
Ser LGBT+ é meio que o símbolo de “a pessoa que não pode amar quem ela quer amar”. Quando alguém pensa “personagem gay”, já vem com o conceito trágido embutido.
Eu acho que tem duas grandes ideias na cultura dominante sobre LGBT+:
1. é errado e você não pode ser (visão vilanizada – porque pra muita gente É errado. a pessoa que ama o que não deveria amar e tá errada)
2. os pobrezinhos que não podem ser/fazer/querer o que eles querem (a visão dos “aliados”).
Acho que mesmo quando o pessoal fala “é ok ser gay, tudo normal”, eles têm internalizada a visão de que ser gay é considerado algo errado e se você é gay você sofre por ser gay. Por não ter contato com pessoas LGBT+, com histórias LGBT+, a pessoa fica presa à visão estereotipada do que é ser LGBT+, que no fundo representa essa ideia de “sofrer por ser gay”.
Aí o resultado disso é o que nós vemos na ficção. Mesmo o pessoal “bonzinho” que quer fazer história legal, não consegue muito escrever história além do estereótipo. Ser gay na ficção tem o mesmo desenvolvimento de uma criatura mitológica – algo imaginário na cultura popular que tem as regras próprias e a gente usa ali com base no que conhecemos (menos a parte que, quando é uma criatura mitológica, o escritor normalmente faz pesquisas pra entender o que é, vê como outros escritores usaram, tenta se certificar de que vai fazer direito). O resultado disso normalmente é aquele personagem homem branco gay afeminado.
Em alguns casos melhor, tem a história de “saindo do armário”, ou a tragédia de “morri porque a sociedade me odeia, olha como é ruim me odiar”.
Fora dessas temáticas “gays”, os escritores nem sabem como usar um personagem LGBT+. Como assim esse agente secreto em uma aventura para desmascarar um vilão terrível pode ser LGBT+? O que tem de gay aqui?!!!!
99% das histórias LGBT+ não passam disso. Em série normalmente em algum momento um personagem vai perceber que é gay, vai passar pelo processo de sair do armário, yeey. Vai ter um namorado do mesmo gênero. (dependendo da história, é misturado: a pessoa encontra alguém legal colocada ali pra essa narrativa, gosta, entra em conflito, lita com preconceito e faz escondido, até que no fim vence e sai do armário. tem que sempre sair do armário.) Depois disso ninguém tem mais o que fazer com esses personagens. A série acaba, é cancelada, ou um dos dois morre ou os dois juntos ou ficam ali só de fundo pra dizer que existe.
É assim que também nasce o personagem bissexual e o personagem gay. O personagem bissexual é aquele que tava ali até alguém (provavelmente na segunda temporada) perceber que não tem representatividade LGBT+ e decide usar um dos personagens secundários pra Narrativa Gay. Porém, tal personagem já teve a relação f/m obrigatória anteriormente. Ou seja, acaba virando bissexual por acaso. Talvez. Ninguém sabe direito, porque raramente dentro da história falam se o personagem é bi ou o que é. Às vezes fica aquela coisa de “virou gay”, às vezes fica claro que a pessoa tem atração ok por mais de um gênero, às vezes depois que a Narrativa Gay acaba a pessoa volta pras relações f/m e vida que segue.
*às vezes o personagem bi passa a se identificar como gay mesmo. mas nunca dá pra saber se estão tentando uma narrativa de heterossexualidade compulsória, ou não sabem que bissexualidade existe, ou é só uma bagunça mesmo. provavelmente uma bagunça.
Já o personagem gay, é aquele que tá ali especialmente pra Narrativa Gay, ele quase não serve pra nada mais na história, às vezes não tem história de vida própria (a não ser pra dar alguma lição de Vida Própria Sendo Gay) e tá ali só pra ser o Interesse Romântico de Suporte (e como escritores estão ansiosos pra mostrar que amam os gays, normalmente é o Interesse Romântico Idealizado perfeito. Tá sempre ali pra tudo, é compreensivo, faz gestos românticos. Só vive em serviço do outro). Se o personagem bi/gay já é secundário, esse é o secundário do secundário. Provavelmente vai morrer pra fazer o outro sofrer.
(obs: apesar disso dar a entender que bissexual tá em uma situação melhor, não é tão simples assim. toda essa estrutura é um reflexo de uma visão heteronormativa e dificilmente os autores reconhecem a bissexualidade do personagem. isso acaba servindo mais pra confundir e criar estereótipos tóxicos, tipo que o bissexual vai buscar a relação f/m no fim do dia, que é a Verdadeira™, do que pra ser uma representatividade digna de qualquer coisa LGBT+)
Quando tudo isso é ultrapassado, tem histórias que conseguem ir além, mas mesmo nesses casos ser Gay ainda acaba tendo impacto no uso simbólico da história.
Um exemplo é Lexa, em The 100, que segue justamente essa estrutura do personagem bi com o secundário gay (onde a Lexa é a secundária). Ela inicialmente não foi idealizada como uma personagem gay, ela era só a Commander implacável líder dos povos nativos daquela região, mas é interessante como a partir do momento que no canon foi confirmado que ela teve relações uma mulher (nunca foi confirmado no canon a sexualidade dela) e logo depois quando o romance entre ela e a protagonista, Clarke, se desenvolveu, a história da Lexa se tornou “eu tenho que escolher entre cabeça ou coração”.
Na temporada seguinte isso ganha uma dimensão maior ainda – a história da Lexa se torna a história da “pessoa que não pode amar quem ela quer amar”. No contexto, não por ela ser gay, mas a simbologia está toda ali ao ponto da figura paterna dela (assim descrita pelo showrunner) tentar matar a namorada dela pra separar as duas, terminando com a morte da própria Lexa.
O mesmo vai pra San Junipero, que é uma história sobre um amor que não foi possível na primeira vida (por causa de homofobia!) e elas estão tendo a chance de viver isso nessa segunda vida. É um final positivo, mas ainda carrega a tragédia em si.
Repara como tanto a Nomi e o Lito em Sense8 também repetem o mesmo tema de “quero algo que não posso ter” de tragédia embutida, mesmo sendo umas das melhores histórias. Black Mirror também. Esse tipo de narrativa centra o olhar do aliado, colocando-os como bonzinhos que simpatizam com a dor, “cara, tu viu como eles sofrem?”, em vez de lidar com o fato de que eles também podem contribuir pra opressão e/ou que pessoas LGBT+ são seres humanos com interesses próprios e vidas normais que independem de ter valor pra o expectador heterossexuais (no caso, dar uma lição sobre a tragédia da vida).
Outras histórias onde o mesmo tema acontece: Black Mirror, Orange Is The New Black, Humans.
Então mesmo que essa seja uma história que quebra o típico Narrativa Gay, até por acontecer em um futuro pós-apocalíptico que teoricamente não trata sexualidade da mesma forma que hoje, a simbologia de “ser gay” (a pessoa que não pode amar quem ela quer) ainda é o coração da história.
Da mesma forma que o trope Mulher Experimento usa o símbolo “mulher” pra discutir a humanidade de seres “mais poderosos”, essa história usa “gay” como símbolo pra discutir uma pessoa que não pode ter o que quer. A morte logo depois de ficar com a garota é a forma mais simples, e chocante, de passar essa ideia.
Obviamente, os escritores não sentaram e se perguntaram “o que ser gay simboliza e como usar isso?”, mas é um trabalho inconsciente de como a gente percebe o que é ser gay na cultura popular e potencial metafórico, guiando as decisões narrativas.
Até agora eu pensava que o Bury Your Gays era motivado muito por 1- Histórico na Ficção e 2- Acidente. O Histórico é que o trope tem origem diretamente em decisões homofóbicas que consideravam representatividade LGBT+ “propaganda positiva”, então se fosse mostrar, precisava terminar em tragédia pra mostrar que era ruim. Então isso deu base pra uma leva de histórias onde as pessoas LGBT+ só existiam em histórias trágicas, o que por si influenciava os novos escritores e quando em 2016 você tem 26% de toda (a pouca) representatividade LGBT+ morrendo e finais positivos são uma raridade, mostra que mesmo quando não estão decidindo matar de propósito, essas decisões ainda tem impacto.
2- Acidente. Acaso do Destino. O que acontece é que dificilmente personagens LGBT+ são protagonistas – mesmo quando um deles é, a outra parte do casal acaba sendo um secundário colocado ali pra Narrativa Gay porque deus me livre outro protagonista LGBT+!!! Ou seja, personagens LGBT+ acabam povoando os papeis secundários – e quais são justamente os personagens que morrem nas histórias? Os secundários. Mais do que isso, por causa da Narrativa Gay e o escritor buscando provar que é um aliado™, eles dão espaço pra mostrar que o personagem é legal ou fazem com que ele seja importante pra os protagonistas – tornando-os a vítima ideal para a tragédia tocante. Alguém tem que morrer pra história ser realista, né? Mas não pode ser os principais!!!! Quem acaba sendo o importante, mas não tão importante? O personagem gay.
Esse é Acaso, mas um resultado da resistência de escritores/indústria a ter protagonistas LGBT+ (a irmã pode ser gay, né? mas a garota principal, não) e falta de narrativas diversas o bastante pra que os poucos secundários LGBT+ morrendo não seja tão ruim. É aquilo de: é verdade que “ah, mas todo mundo morre” e “ninguém está seguro”, mas o fato é que nem todo mundo tem a chance de ter 2390832923823 histórias onde está seguro e não morre.
Só que além da gente só conhecer história trágicas LGBT+ (ou seja, acaba repetindo) e esse Acaso, existe também essa dimensão simbólica de como a gente aprende o que significa ser “gay” e usa isso nas histórias.
Um outro exemplo do uso de “gay” como símbolo é pra “experimentar a vida, o diferente, ser livre, as opções, curtir”. Você vai ver muito em histórias que envolvem robôs (mulheres), que estão “descobrindo o que é ser humano”, a personagem fazer isso através de um beijo em outra mulher. Isso é usado especialmente em trailers e clipes. Quando querem falar de “mulher experimentando a vida” – vai ter lá duas mulheres se beijando. Ou seja, duas mulheres se beijando tem a simbologia de experimentação e é usado da mesma maneira que o personagem gay é usado com o conceito de “não pode amar quem quer amar”, que em si é uma tragédia escrita, e talvez uma das maiores razões pra escritores continuarem perpetuando a morte até quando estão “dando suporte”.
“A história me levou pra esse caminho” + “era a conclusão lógica” pra explicar a morte são um reflexo dessa visão enraizada. (“era a conclusão lógica” = “meu cérebro vê como bonito e tocante a luta da pessoa lgbt+ pra existir e conclui que seria trágico de uma maneira emocionante acabar morrendo pra mostrar o ápice dessa luta. morreu, mas morreu sem quem era!”)
obs: uma outra parte menor do Acaso, mas que conta, é que morte é algo fácil que choca e qualquer um consegue fazer. é o tipo de coisa que autor iniciante adora fazer nas histórias quando ainda não sabe como criar carga emocional pesada de outras formas. então muita gente acaba usando a morte