Acho que um dos maiores mitos que a gente acredita quando tá começando a escrever é que “as coisas surgem na nossa cabeça.” É meio mágico, incontrolável. Você está andando por aí e um personagem interessante se manifesta entre os seus pensamentos e ganha vida. É até legal a gente fazer parte disso, de algo maior, de ter essas vozes nos guiando e inspirando.
Só que isso não só é um mito, como leva a 4 problemas:
1. “O personagem surgiu assim, eu não posso mudar!”
2. Desanimar da sua ideia toda vez que descobre alguém que já fez antes. Afinal, não é tão original quanto você pensava.
3. “Tô sem inspiração pra escrever”
4. Os pensamentos não estão vindo, deve ter algo errado comigo. Talvez eu não seja mesmo escritor. Talvez eu não tenha o dom.
1. “O personagem surgiu assim, eu não posso mudar!”
Isso é algo que eu acreditava no início. Eu quase sempre imaginava o protagonista um garoto branco, e quando comecei a aprender sobre feminismo, isso começou a entrar em conflito. Eu dizia pra mim: Mas eu não escolhi assim! Ele veio assim! E a esse ponto eu estava tão apegada ao personagem que eu não queria mudar. Parecia algo tão difícil, e ruim, e errado.
Agora, anos depois, parece bobeira. Porque eu sei que a história é minha e eu tenho o controle sobre ela. Quer dizer, não é tão simples assim, e eu não gosto de ditar o que é ou não escrever, mas: eu também aprendi a ver escrita como uma arte. Construção. Eu não faço uma história se materializar em um instante. Eu pego a minha ideia e desenvolvo, exploro, vejo até onde ela vai e o que eu preciso alterar pra que a história final se encaixa no que eu quero passar. Fico pensando, como é que você faz construção de mundo, sem construir? “Ah, meu mundo surgiu na minha cabeça assim e é isso!” Mas… e os furos? Você não faz pesquisa? Você não busca fazer algo melhor?
Acho que a verdade verdadeira lá no fundo é que todos nós de alguma forma alteramos a nossa ideia “original” ao desenvolver da história. E se não, acho importante saber que é possível. É tipo uma ferramenta a mais. Você não precisa usar. Mas você precisa saber que existe na sua oficina e quando ou não usar. Imagina um mecânico pegando qualquer ferramenta e enfiando no carro e mexendo de qualquer jeito. “Moço, por que cê tá fazendo isso?” Ele: eu senti que é assim!
Ele até pode fazer dar certo e ser bom, e eu sou bem o tipo de pessoa que começa a escrever sem planejar, sem saber o que vai acontecer – às vezes até sem saber sobre o que é a história. Qualquer coisa que der vontade de fazer eu faço e foda-se. Mas dá pra melhorar, consertar, editar, construir, desenvolver. Ter a sua caixinha de ferramentas.
E quanto maior a sua caixinha de ferramentas é, mais você vai perceber que “ah, não posso mudar porque veio assim na minha cabeça” não é algo tão consolidado quanto parece. Com o tempo, aquele sentimento de “precisa ser assim” passa. E você ganha um novo horizonte pra suas histórias.
2. Desanimar da sua ideia toda vez que descobre alguém que já fez antes. Afinal, não é tão original quanto você pensava.
Esse “é assim na minha cabeça” leva a achar que existe algo original. Eu não sei o que a gente pensa quando se importa com essa “originalidade” – acho que talvez a gente não pensa. De qualquer modo, já vi 92389328 vezes gente falando “tinha essa ideia, mas não é tão original.”
Gente….
foda-se.
Uma coisa é roubar a ideia de outra pessoa, esconder as origens e não dá os créditos pra ficar com a fama. Outra coisa é você gostar de escola de bruxos e decidir não escrever uma história sobre isso porque Harry Potter já existe.
De fato, algumas histórias são legais porque trazem “ideias” novas, só que a gente lê livros por vários positivos. Às vezes uma narrativa interessante faz uma ideia batida 1000x melhor. Cada autor tem a própria voz e perspectiva.
Além do mais, desculpa te dizer isso, mas você não tira ideias do nada. Seu cérebro absorve tudo ao seu redor e recombina de um jeito que parece novo pra você. Então pensar que “veio do nada” é a forma mais rápida de cuspir de volta pra o mundo a mesma coisa que você engoliu.
Pra completar, vou te contar um segredo: a maioria das pessoas não está procurando algo novo, mas algo que elas conhecem. Por exemplo, o povo vai na livraria pensando “caramba, quero uma história de vampiros legal.” Ou “adoro história que se passam na escola, quero mais.” E a gente pode ler 9238923823 versões do mesmo tema e ainda querer mais.
O ponto disso é que se alguém já escreveu algo parecido, ou é uma tema já batido, não te impede de fazer algo legal.
3. “Tô sem inspiração pra escrever”
O terceiro dos 4 Cavaleiros do Apocalipse do “minhas ideias vem do nada.” Se você não tem controle, você precisa ficar sentado esperando aquele momento ideal que o chão vai ser varrido de debaixo dos seus pés e você vai ser engolido em um frenési de escrita que vai expor a sua genialidade!
Esses momentos acontecem. Inclusive, comecei a escrever esse texto porque veio tudo na minha cabeça e aquela vontade de escrever. Só que… a maior parte do tempo, não é assim. Se você for escrever uma história grande, então, ferrou. Porque no primeiro dia você vai estar inspirado, e o trabalho dura meses, às vezes anos.
Não sei como falar sobre isso a não ser dizendo que: você não se inspira pra escrever, você escreve pra se inspirar.
Acho que você precisa encontrar alguma coisa confortável que te faça escrever. Fanfic, conversar com os amigos, competir no NaNoWriMo, aula de escrita. Qualquer coisa que funciona pra te fazer colocar palavras no papel. Mesmo que não sejam boas. Mesmo que não sejam o seu livro. Porque prática é importante e quanto mais você pratica, mais desses momentos de inspiração você vai ter, mais controle sobre começar a escrever você vai ter e, no fim, mas vai você aprender a separar os dias que “não tá rolando, vou assistir uma série” e “eu preciso me algemar ao teclado até eu digitar alguma coisa.”
Você não precisa esperar as ideias chegarem na sua cabeça. Você pode ir atrás delas.
4. Os pensamentos não estão vindo, deve ter algo errado comigo. Talvez eu não seja mesmo escritor. Talvez eu não tenha o dom.
Quando todos os 3 se combinam, você não consegue escrever. Escrita é algo mítico, incontrolável, que não é sua responsabilidade!!!!!! E aí você tem o surto de inspiração genial e no dia seguinte vê que o texto é uma merda. Deve ser porque você é uma merda. Você não tá tendo ideias legais, nem inspiração. Deve ser porque você é problema!!
Mas isso é tudo mentira. É porque você tá sendo o mecânico que tenta consertar o carro sem ferramente com o poder do coração. E o que você tem que saber é: não precisa ser assim.
Você pode desenvolver suas habilidades.
Você pode pegar aquele texto ruim e aprender a fazer melhor.
Você pode estudar escrita, construção de histórias.
Você pode praticar, praticar e praticar, e vai ser melhor.
Você pode pedir ajuda.
Todo escritor foda que você conhece, as suas histórias preferidas, todas elas são feitas assim. Quando Frozen foi idealizado, a Elsa era uma vilãzinha, no fim ela se tornou a parte mais poderosa do filme. Ninguém espera que o primeiro rascunho seja perfeito. Pelo contrário, já sabe que vai ser uma merda e nem vai ver a luz do dia. Para um momento pra acompanhar de perto escritores – você vai ver um monte de gente sofrendo, perdida, lutando pra sentar e escrever, pra consertar uma página mal escrita, entrando em crise achando que a história não tem jeito.
Esse mito do “surgiu na minha cabeça” pode ser muito tóxico pra escritores.