Apenas refletindo sobre legitimação cultural, apropriação cultural, formação de cultura
“Netflix is accidentally inventing a new art form — not quite TV and not quite film”
Não é o Netflix que está inventando essa cultura, o Netflix tem o poder de torna-la oficial e produzir coisas a partir dela.
A questão-chave é que nós não temos a consciência de que o que eles estão fazendo é pegar uma forma de cultura e mostrando uma versão dela, nós vemos como se eles tivessem criando essa cultura. Só que isso massacra a autonomia das pessoas que faziam parte dessa cultura, em primeiro lugar. A partir do momento que eles são vistos como os donos, eu viro a cópia do que eu mesma criei! E se eu não tenho o poder de dizer como essa cultura é (a autonomia), ela pode ser mostrada de uma forma que não me representa. Então no fim usam algo que é meu, dizem que são donos, transformam o significado e eu fico como se tivesse fazendo algo que era meu de forma errada.
Isso em um contexto de desigualdade é mais agravado ainda. Porque você tem um grupo dominante (homens, brancos, hétero) pegando a cultura dos outros como bem entendem e aparecendo como o dono delas. Como só eles têm voz, eles acabam virando o dono da “versão certa”. Então os outros não têm como dizer o que são, não têm o poder de criar a própria cultura e, no fim, ainda são roubados do que são. Isso é apropriação cultural.
Acho que o principal disso, que leva a apropriação cultural, é essa falta de consciência da origem. A falta de consciência de que nós, como indivíduos, somos formadores de cultura. A falta de consciência de que nós temos o poder.
Sim, nós temos.
A partir do momento que nós tratamos (e acreditamos) que o Netflix foi quem criou, nós estamos oficializando ele como dono. A pessoa que escreveu esse título sem pensar, nós que lemos sem refletir, nós demos os créditos ao Netflix.
Não é o Netflix dizendo que é dono. Somos nós, como grupo, acreditando que ele é.
Eu adorei essa imagem que eu usei na capa por acaso, porque reflete isso. Uma garotinha pegando bonecos e colocando vestido. Não é o certo. Se uma empresa de brinquedos ver a garotinha brincando e fazer um boneco de vestido, de repente bonecos de vestidos passam a ser considerados certos. Outras garotinhas vão brincar com bonecos de vestidos. Mas a garotinha do começo vai ter alguma voz sobre isso? E se tinha algum motivo oculto na brincadeira, que eles usarem vestido era proteger da poeira na terra, mas aí a pessoa que vende diz que usaram vestidos porque é coisa de menina? E aí todo mundo vai tratar como boneco com vestido ser coisa de menina (e isso é o certo!), enquanto não tinha nada a ver e a garotinha não tem a menor autonomia pra mostrar a sua versão da história e, nem de longe, recebe créditos pelo que fez?
Se nós temos consciência de que o boneco com vestido da empresa é uma versão, nós percebemos que nós podemos também criar nossas versões e não precisamos aceitar qualquer uma.