Volta e meia em uma conversa sobre tratar pessoas como seres humanos aparece alguém que, diante de um conceito estranho, acaba recuando com o clássico “Isso é legal, mas ainda acho que vai levar tempo pra mudar. Só os filhos dos filhos dos filhos dos nossos filhos é que vão ver alguma mudança, sabe?” Eu não sei qual é o mundo que essa geração vai viver – se ele vai ser melhor ou pior. O que eu sei é que a mudança não está tão distante assim. Na verdade, ela está acontecendo agora.
Eu não sei exatamente de onde vem essa ideia. É por que nós não consideramos nossas experiências como real? É só porque nós temos uma mentalidade conquistadora que quer sempre converter o outro? É por causa da ideia errônea de evolucionismo? É por causa da História que nós aprendemos na escola?
Eu sei que eu levei um tempo pra desconstruir essa forma de pensar. Acho que o principal problema é a nossa ideia de evolução. Essa merda toma conta do nosso pensamento em todas as áreas.
O que é isso?
A ideia de que existe uma evolução gradual linear.
Você sai do 1, vai pra o 2, depois o 3, depois o 4… até chegar ao ideal de melhor.
Essa ideia de evolução aparece, por exemplo, quando temos um padrão de beleza considerado o certo, e vemos como se todas as pessoas devessem alcança-lo. Aí nós julgamos o valor delas de acordo com o nível que a pessoa está. Parece a Barbie? YAY, NOTA ALTA! É uma mulher negra, gorda, de cabelo curto? Nota baixa.
Isso acontece bastante com pessoas gordas, é como se você tivesse numa eterna corrida pra virar um ser humano completo (magro).
Essa ideia de evolução acontece também no desenvolvimento cultura/econônimo/político de um país. Por exemplo, o Brasil é visto como um país subdesenvolvido. É como se nós não fossemos um país completo. Nós temos que crescer, alcançar medidas, para poder nos comparar a países como os Estados Unidos. Aliás, os Estados Unidos é o modelo ideal a ser alcançado. É como se ele fosse o ponto mais avançado e, todos os outros países no mundo inteiro, tivessem correndo na mesma pista pra ficar igual a ele.
Isso também acaba se refletindo na mentalidade de que se você tem uma tribo, o desenvolvimento dela inevitavelmente vai dar em um país como os Estados Unidos. E aí você cria essa hierarquia cultural. Os índios são inferiores porque não desenvolveram um computador. A Índia é inferior porque é muito religiosa.
E, no caso mais pertinente a essa conversa, a ideia de que o pensamento cultural nosso é linear-evolutivo também. Pra acabar com o machismo a gente ainda tem que digivolver. Temos que virar esse ser mais evoluído futurista.
O problema disso tudo é que esse pensamento nos cega para a realidade do agora.
Eu fiz essa imagem, porque é a forma mais simples de explicar:
A cultura não é essa coisa em ordem de crescimento, ela é mais essa coisa múltipla expandida.
Repara que eu usei o alfabeto, e não números, porque todas as letras no alfabeto tem o mesmo valor e não há nenhuma razão para uma vir antes ou depois. A gente enxerga como se A fosse o começo e Z o final por senso comum, porque foi acostumado a enxergar assim de sempre usar o alfabeto na ordem, mas na realidade o alfabeto pode ser apresentado em qualquer ordem. Ele é só o conjunto de letras que nós usamos. Fim.
E aí, em vez de ser essa sequência limpa com hierarquia, tipo veio o A, aí depois o B, depois o C… É mais pra: Nesse momento no mundo está acontece o X, o H, o B, o T, o L. Mesmo que daqui a 10 anos alguém escreva um livro falando que esse aqui foi o ano do G, as realidades X, H, B, T e L vão ter existido mesmo assim.
Aliás, isso é muito interessante, porque quem escolhe sobre o que o nosso ano vai ser lembrado é quem tem o poder de fazer isso. Tipo, a Globo. Se a Globo começar uma propaganda forte falando que esse foi o ano do declíneo do governo da Dilma, nós vamos enxergar dessa maneira, é isso que vai ficar marcado, é isso que as gerações futuras vão saber, mesmo que não seja a opinião de todo mundo e nem a realidade total.
E, aliás, por isso eu também achei interessante usar só as letras do alfabeto que nós usamos. Tipo, enquanto eu fazia a imagem, eu comecei a perceber que o alfabeto era pequeno demais pra representar todas as variações culturais através da História. O F que aparece no final da linha não é o mesmo F que aparece no início. Do modo que tá parece que são as mesmas coisas se repetindo através do tempo. Só que aí tem um detalhe: mesmo que seja diferente, não é exatamente assim que nós enxergamos o passado?
Nós usamos os elementos que nós conhecemos agora pra falar de uma outra época. Nós traduzimos o passado de acordo com a nossa visão de mundo. Isso significa que nós não realmente vemos o passado, mas o passado em relação a gente. Confuso? Eu achei. Deixa pra lá.
A questão aqui é que acontece várias coisas ao mesmo tempo. O mundo atual é machista. E também não é. Vai ter lugares que você vai entrar e a existência de pessoas trans vai ser validada e algo cotidiano, enquanto vai ter outros que é como se elas não existissem. Isso não é coisa do passado ou do futuro, é coisa do agora.
Acho que o melhor exemplo disso (que eu adoro) foi o VMA que aconteceu em um dia e o Emmy no outro. Em pleno VMA Beyonce aparece poderosa com a palavra feminista. Veja bem: uma mulher, negra, poderosa, rainha de tudo, anunciando orgulhosamente que é feminista, falando sobre dominar a própria sexualidade e gostar de sexo. No dia seguinte o Emmy coloca uma mulher latina rodando em um pedestal resumindo a mulher a um objeto atrativo para entreter enquanto você assiste coisas sérias. É tipo tropeçar e cair no passado, mas, na verdade, não. O presente possibilita a existência dessas duas realidades e visões de mundo.
É basicamente quando você conversa com alguém que tem outra opinião. Qual é a verdade? As duas, ué. As duas são reais.
Aí é que entra aquilo de: será que nós não consideramos nossas experiências como reais? Vamos supor que eu sou uma mulher e gosto de jogar futebol. Aí eu vou e digo que gosto de coisas de garoto. Isso é uma forma de desvalidar a sua experiência. Você é uma garota que gosta disso. Você é a prova real indiscutível de que futebol também é algo que garotas gostam.
E, depois de aprender sobre essa questão evolutiva, esse foi o meu segundo choque de realidade. Se eu existo, se eu quero algo, se eu faço algo – é a prova real de que existe. Meu avô é o tipo de pessoa pessimista que fala coisas como “as pessoas só estão interessadas em sacanear umas as outras! em se aproveitar umas das outras!” e crescer ouvindo isso me deixou tipo: será??? Até que eu comecei a pensar “wtf! eu existo” – Eu não quero sacanear os outros, eu não quero me aproveitar dos outros, eu até me sinto mal com essa ideia. Eu sou a prova real de que existe gente que não é assim. E se eu colocar os pés no chão e for assim, a minha mera existência vai provar que existe.
Essas duas perspectivas – a de ver tudo como uma evolução e a de não reconhecer a própria existência – se conectam, porque é justamente por enxergar tudo como essa linha evolutiva (esse padrão único do que é o real) que nós deixamos de ver como reais as outras possibilidades, inclusive a nossa. No exemplo lá dos país subdesenvolvidos – Sim, tem muita coisa pra melhorar no Brasil, mas também tem muitas outras coisas da nossa cultura que são importantes e nós podemos ensinar aos outros. Só que por enxergar como algo linear e não múltiplo, nós não vemos essas diferentes partes.
E o problema é que, por não entender que ela existe, nós começamos a agir como se elas fossem impossíveis. Nós não vemos que nós temos o controle direto de mudar o que existe e não existe na nossa vida. Não to nem falando de uma coisa mágica – “vou imaginar que existe muito dinheiro na minha carteira” – to falando da realidade.
Se eu me preocupo com questões LGBT+, se eu aprendo as diferenças, se eu começo a tratar as pessoas com o valor real delas e respeitar as particularidades de cada experiência, se eu mostro que é possível ser assim e essas coisas, no mesmo instante é possível ser assim.
E, aí, não é em um futuro distante que a pessoa vai ser aceita e vão entender, é agora.
Eu ainda tenho outras teorias sobre isso, mas por hoje é só.
Resumo: Não vivemos em uma linha reta evolutiva, sua experiência é real e pelo simples fato de você existir é possível ser assim.