Uma discussão sobre histórias “realistas” retratando sociedades desiguais, Game of Thrones e uma análise de como Sense8 muda isso.
Aviso: estou falando da série Game of Thrones. A série. Não li os livros e sobre essa parte eu não posso analisar.
O APELO DE ESCREVER UMA FANTASIA ~REALISTA~
Quero conversar sobre a afirmação de que “É uma história realista de acordo com a sociedade da época” usada pra justificar coisas tipo estupro, mulher como objeto e qualquer porcaria que enfiem. Parece plausível. Fica difícil fazer uma história de época sem mostrar a mulher como o objeto de posse do homem que ela era (era?) considerada. E, por um tempo, era um conflito do qual eu não conseguia sair. Vai simplesmente esconder essas partes do passado? Cadê a liberdade artística? Mas e o efeito que isso tem hoje em dia?
E, cá entre nós, o argumento de que “é fantasia, tem dragões! por que não pode fantasiar mais e deixar de ser machista?” é um pouco fraco. Faz sentido e eu vou falar na minha análise de Game of Thrones, mas é falho. Acho que um dos feitos da fantasia é inserir o extraordinário no normal – é justamente essa fusão de uma cultura comum, que talvez tenha coisas a mais escondidas. Não é regra, mas é um dos apelos. Ainda mais em uma história como Game of Thrones que tá no vértice dessas duas realidades. Dá pra assistir esquecendo completamente que não é apenas uma história de época, até a forma com os personagens se relacionam com o extraordinário é com um tom de descrença. É como se os mitos dos nossos livros de História fossem verdade (as mulheres foram queimadas na fogueira porque elas realmente eram bruxas). E essa dinâmica é um dos diferenciais da série. Por exemplo, uma história que não é assim: Senhor dos Anéis. O mundo de fantasia é o status quo que todos os personagens sabem que existe. Uma história que é assim: Piratas do Caribe. Parece uma história real de piratas, até que surgem monstros marinhos e zumbis.
Então eu entendo o apelo de não mudar a estrutura da sociedade. E Game of Thrones é muito bom em mostrar que mesmo dentro dessa estrutura as mulheres são tão capazes quanto os homens, além de ter personagens mulheres relevantes.
Agora por que mesmo com tudo isso é ruim o que Game of Thrones faz? Onde tá o problema?
O MODO COMO AS COISAS SÃO RETRATADAS INFLUENCIA
Depois de muito pensar tenho a impressão de que é no meio do caminho. Entre a realidade de fato e o que acontece. A gente tá esquecendo que existe um filtro na hora de fazer a representação. Não são as coisas, é o modo como as coisas são retratadas.
Uma pessoa foi estuprada no mundo real. Fato.
Uma pessoa foi estuprada na história. Fato.
Mas isso pode ser retratado de mil maneiras. Eu posso falar que uma pessoa foi estuprada, eu posso mostrar a coisa acontecendo, eu posso mostrar uma foto, eu posso deixar implícito pelo olhar de medo, eu posso mostrar só que vai acontecer e cortar. E essas são só algumas das formas. Em uma cena onde eu mostro visualmente a pessoa sendo estuprada, dá pra fazer de diversos ângulos que refletem coisas diferentes. Tipo um close no rosto dela, ou no do estuprador, ou mostrar a cena acontecendo como o olhar de uma terceira pessoa, ou de longe como se fosse um avião passando.
Game of Thrones mesmo já teve tanto estupro que nós temos uma variedade de representações.
E isso falando de posição de câmera. Também influencia como os personagens reagem e o caso é tratado depois.
Por exemplo, Game of Thrones mostra o homem gostando do estupro, enquanto as mulheres sempre são mostradas sofrendo. O que é problemático tanto para as mulheres quanto para os homens.
Então o problema não é retratar uma realidade injusta. É simplesmente como você retrata.
Eu comecei a parecer isso quando assisti Orange Is The New Black, que é uma série que não tem medo de ir no “politicamente incorreto”, porque a realidade é assim. Existe racismo. Ódio. Opressão. A mulher é dominada por ser mulher. Mas a forma que é desenvolvida deixa claro de que aquilo não é certo, questiona os personagens, questiona até mesmo se é realmente errado.
Agora eu assisti Sense8 e isso explodiu a minha cabeça.
HOJE EM DIA NÃO É MUITO DIFERENTE DESSA REALIDADE HISTÓRICA
Primeiro, eu queria falar algo que o pessoal não percebe. A nossa sociedade não é justa. A nossa cultura não é igual. Eu não to falando de um modo geral, eu to falando de hoje. De agora. Todas essas coisas mostradas em Game of Thrones, mesmo que em um contexto de época, acontecem hoje e acontecem do mesmo jeito. Se é que não estão acontecendo dentro da sua casa ou com o seu vizinho.
Se eu fizer um filme que uma mulher casa contra a vontade, é estuprada pelo marido e não pode fazer nada, eu posso e seria realista de acordo com a nossa sociedade. É só trocar o castelo e o vestido por uma casa e uma roupinha comum.
Isso justificaria eu mostrar estupro e agressão a vontade?
Eu sei que existem mudanças. Hoje eu faço faculdade, tenho a liberdade de escolher não me casar e posso fazer tudo isso livremente sem correr o risco de ser assassinada ou jogada em uma fogueira. Apesar de que mesmo isso hoje em dia é um privilégio e muita gente não tem a mesma sorte. Mas o fato? É o mesmo.
Aliás. ALIÁS. Recentemente teve a capa da Batgirl que mostrava a personagem indefesa na vez que ela foi torturada e estuprada, em uma história que o Coringa não é muito diferente do odiado Ramsay, e que marcou a história da super-heroína por um longo tempo. Ainda marca, por isso que a capa de “homenagem” à personagem é relembrando esse fato. Estamos falando de hoje em dia, uma SUPER-HEROÍNA.
Então, agora que eu lembrei que qualquer série, filme ou livro pode mostrar a mesma coisa e dizer que é realismo da sociedade da época, voltamos para Sense8.
ANÁLISE DE SENSE8 VS. GAME OF THRONES
Uma coisa importante em Sense8 é que ela mostra 8 lugares diferentes ao redor do mundo com personagens vivendo dramas diferentes. É uma história onde a cultura – e o realismo – fazem parte.
Na Coreia uma mulher lida com o fato de, mesmo tendo potencial, é rebaixada a segunda da família porque é mulher (Cersei?). Na Índia nós temos uma garota que está para se casar em um desses ~casamentos perfeitos arrumados~ (wow, as pessoas hoje em dia se casam por negócios e família? sim.). No México nós temos uma mulher que apanha do marido.
Só que existe uma diferença enorme entre isso e como isso é mostrado. Inclusive, se você pensou que qualquer parte disso é clichê, você está profundamente enganado.
(nessa parte tem spoilers do que acontece com uma personagem secundária na s01 de sense8 e do que acontece no s05e05 de Game of Thrones)
Vou analisar o caso da mulher do México porque me lembra o que aconteceu com a Sansa. Nós temos essa personagem que foge de um namorado abusivo, alegadamente perigoso, e que mais tarde aceita se casar com ele pra salvar o amigo de uma burrada que ela fez. Então tanto ela (Daneilla) quanto a Sansa estão em uma situação de impotência, sendo violentadas e abusadas contra a própria vontade, mesmo que em parte elas tenham “aceitado” entrar nisso. E fica claro que ambas aceitaram porque é isso que precisam fazer pra sobreviver. Inclusive, Daneilla é “salva” pelo protagonista dessa trama, o Lito, então poderia dizer que a trama dela parece tão orientada pra mover a história do homem quanto a da Sansa é centrada no Theon.
Um momento muito específico que questiona isso de “é a sociedade da época” é quando o namorado abusivo invade o apartamento que ela tá pra saber por que foi abandonado. Ele pergunta o que fez de errado. Ela revela que esse namorado batia nela. E ele responde algo tipo “isso é algo ruim, eu sei. mas eu fui criado assim, essa é a minha cultura, eu fui ensinado a fazer a minha mulher me respeitar batendo”. (isso falando pra mulher que ele quer de volta e pra dois homens que foram criados na mesma cultura, mas não fazem esse tipo de coisa)
Só essa cena acho que já bastava pra dar uma tijolada em toda essa merda que Game of Thrones faz. Ela não é só uma cena que reflete a realidade – mostrando um namorado abusivo sendo abusivo – como em si questiona essa realidade. Questiona esse argumento de que “ok, é a minha cultura, então eu posso fazer isso”. Pior ainda, mostra como esse é um pensamento que existe hoje.
“Os livros refletem uma sociedade patriarcal baseada na Idade Média. Não era um tempo de igualdade sexual. Era muito classista, e as pessoas eram divididas em três classes. Eles tinham ideias firmes sobre o papel da mulher” isso é o que o George R. R. Martin disse sobre mostrar estupro.
Se você corta o “Idade Média” dali é exatamente o mesmo argumento que poderia “justificar” Sense8 mostrar a mulher sendo violentada e estuprada. Mas a série mostra a mesma realidade de uma maneira que não é abusiva (para quem assiste, para a nossa cultura). Como ela faz isso?
1- Não esconde a realidade. Merdas acontecem. Não é uma questão de não falar sobre ela.
2- Não usa a cena de violência gratuitamente. Nós não precisamos ver o ato pra entender o que acontece, ainda mais pelas marcas na personagem e todo o comportamento evasivo dela.
3- Tem cenas como a acima, que questiona essa ideia.
4- Coloca em cena personagens que pensam o oposto e não são limitados por essa cultura, mostrando que mesmo se você foi criado de determinada maneira, não precisa ceder a ela.
5- Mostra a personagem com bastante autonomia e dona da própria sexualidade.
6- Mesmo sendo uma personagem secundária em uma série com 9328293823 personagens, ela não é tratada como um estereótipo. Gosto muito no início como ela parece uma tarada cabeça de vento que só fala mal de outras mulheres, mas conforme nós vamos conhecendo mais é mostrado como isso é um reflexo da situação em que ela se meteu, mais como uma fachada e uma forma de escapar. E repare que é bem problemático o que ela fala das outras mulheres no início, só que é contextualizado e nos faz ver que existe uma pessoa por trás dessas coisas.
7- Mesmo quando ela decide aceitar o casamento pra salvar o Lito (tomando o controle e tentando consertar as próprias ações, parte do arco independente de crescimento da personagem), a escolha dela não é mostrada como “ah, mulher fraca”, nem “dependente de homem”, nem “tá ali pra servir o homem”.
8- E eu poderia falar mais sobre a personagem, porque ela é mais do que essas coisas que acontecem com ela.
É interessante, porque mesmo que Daneilla e a Sansa estejam igualmente em uma situação de impotência sofrendo abusos, ainda tem um tom de controle no que ela faz.
E, olha, essa subtrama não é a única de Sense8 que desenvolve algo assim. A série mostra todo tipo de coisa problemática, personagens inclusive reproduzindo discursos machistas, mas desenvolve tudo com consideração.
(fim dos spoilers)
ENFIM
“Não ser sexista significa que você precisa necessariamente retratar uma sociedade igualitária?” George R. R. Martin pergunta.
Não. Significa reproduzir uma sociedade injusta de uma forma não sexista.
Porque, sério, alguém aqui fica lendo história utópico? Fora elas, todas as outras retratam sociedades que não são igualitárias.
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Queria aproveitar pra mostrar um exemplo prático disso que aconteceu com essa polêmica do estupro em Game of Thrones. Um dia eu ligo o computador e vejo a manchete: George R. R. Martin defende cena de estupro em ‘Game of Thrones’ [sic]
Várias pessoas me mostraram isso e houve discussões do tipo “já que ele aprova, tá tudo bem”. Mas antes de publicar esse post eu decidi buscar a fonte real da entrevista e, adivinhe só, ele não aprovou. Não defendeu. Não foi nada disso. A fonte é uma entrevista da revista Entertainment Weekly, que “falou com o autor George R.R. Martin para saber sua prespectiva sobre as linhas narrativas das personagens femininas em seus livros bestsellers As Crônicas de Fogo e Gelo” [traduzido exatamente].
Aparentemente, não perguntaram pra ele: E aí, o que você achou de fazerem a Sansa ser estuprada? O que você acha do uso de estupro na série?
Se você ver o original, a pergunta é sobre os livros que ele escreveu e ele fala sobre o que ele escreveu, por que ele escreveu. Ainda de uma forma bem clara mostra que estupro e violência é uma realidade hoje, o que eu disse ali em cima também.
Novamente, eu não sei como o livro é feito. Eu não li. E é possível que na história a violência seja mais contextualizada. Como eu mostrei nesse texto, a forma como você mostra influencia bastante. Mesmo que a série e o livro contem a mesma história, o sentido pode ser alterado da forma que você apresenta isso. E esse telefone sem fio do jornalismo só prova isso, né?
Eles pegaram um fato (o motivo de mostrar violência na ficção) e já traduziram pra dizer que é uma defesa dessa abordagem específica (o estupro da Sansa). O título original não é nem “George defende” é “George explica”.
Alguns detalhes mudam e a mensagem que passa já é completamente diferente.
3 thoughts on “O mito do “é uma história realista” e o real problema de Game of Thrones”