Análise de representatividade da mulher usando The 100, Arrow e Alif, o Invisível pra repensar como certos elementos são usados nas histórias.
Depois daquelas discussões sobre Game of Thrones e o estupro, eu escrevi aqui um texto sobre o fato de que não é o que você mostra, mas como mostra. Mais do que algo que eu sei e to compartilhando, meus textos são eu aprendendo sobre algo. Então, inevitavelmente, depois de escrever aquele texto eu aprendi a reparar em como algumas histórias mostram certas coisas. Aqui estão algumas interessantes.
obs: não faço ideia se tem spoiler. não lembro da falar nada absurdo e me esforço pra falar o mínimo, mas detalhes podem ter passado durante as análises
1- The 100 – as quase mortes de Raven Reyes
Eu tava conversando com a minha amiga sobre The 100 e a gente tava comentando como a Raven sempre acaba se ferrando. Tenho a impressão de que como ela é o ponto fraco de quem assiste, ela sofrer é o caminho mais rápido para os nossos corações. Não que a série faça de propósito, acho que isso tem a ver com a própria personalidade da personagem… Enfim, não é essa a questão, a questão é que ela passa metade da série em situações de vida ou morte e eu listei com a minha amiga em um post que vai sair no CC.
Porém, enquanto eu escrevi, percebi que pra quem não conhece The 100, pode parecer que Raven é uma vítima indefesa. A mocinha em apuros. E se você olhar a atriz, a Lindsey parece mesmo a coisa fofa amor do herói que só cai de prédios para ser resgatada e é capturada por vilões.
Só que nem por um segundo isso tinha passado pela minha cabeça. E acredito que nem de quem assistiu. Se eu tivesse um problema, provavelmente correria pra ela. (ou a Clarke, ou a Octavia, ou a Lexa) Mas de todas elas, Raven é a mais badass invulnerável, pelo modo prático que ela lida com as coisas. Por não se meter em dilemas existenciais. É até interessante comparar ela com a Lexa, a líder de um povo onde violência é lei e que cresceu na guerra, então também é alguém que sabe tomar decisões práticas e ir em frente. Mas ela não engana ninguém com aquela cara feia, até pelo papel de líder que faz ela considerar constantemente a vida das pessoas e o perigo das pessoas ao seu redor, ela é muito mais “me importo com meus filhotinhos”. Enquanto a Raven é mais “whatever, explode tudo”.
Enfim, basta dizer que Raven é uma pessoa foda, um misto de Homem de Ferro, Asami Sato e Batman, só que ainda com algo próprio que faz todos nós a adorarmos. E, talvez, o ponto mais marcante da características dela é que Raven se coloca como “a independente que não pede ajuda”.
Então você pensar nela como a pessoa indefesa que cai de prédio chorando e pedindo ajuda, não faz sentido. Ela literalmente se jogou de uma nave velha (reconstruída por ela mesma) no espaço pra chegar na Terra e salvar a família, a humanidade, etc.
Só que aí você pega e vê que ela passou metade dos episódios em que aparece quase morrendo. Como é que você consegue ter um personagem que tá sempre se ferrando e em apuros sem ele parecer uma vítima indefesa?
Como sempre fizeram representando homem. Todo super-herói meio que tá sempre em apuros, mas nós ainda achamos que eles são fodas e acreditamos que eles vão salvar o dia. Por que?
Vendo a lista, eu reparei que tem um detalhe importante em todas as quase mortes: Raven está no controle. Mesmo amarrada em uma maca num covil de gente que quer torturar ela, Raven é mostrada resistindo quando pode – e quando não pode mais. Ela em nenhum momento dessa cena é mostrada como uma pessoa que não tem capacidade e desistiu de lutar.
E só uma, das 12 vezes que ela quase morreu, que isso aconteceu sem ter partido de uma ação da própria personagem. Basicamente, Raven quase morre, mas ela quase morre porque mete a cara e está lá fora fazendo o que deve ser feito.
Parece algo básico, mas é bizarro como não é. Como Raven é uma personagem rara na ficção.
Isso fica ainda mais interessante em pensar que os autores parecem justamente interessados em explorar os limites dessa independência da personagem. Não vou dar spoilers de coisas que acontecem, mas eles fazem Raven ir parar em umas situações bem de apuros. E até agora, ela continua não virando uma vítima indefesa.
Tem uma cena em que acontece algo tenso, talvez o momento mais vulnerável da personagem, em que ela fala que tá com medo e chora e segura a mão dos outros. E aí, mesmo nesse momento, ainda mostram ela tomando a decisão do que vai acontecer, enfrentando e abordam o que ela faz de maneira heroica.
Se isso não é um exemplo de que o que importa é como você mostra, eu não sei o que é.
Obs: E nada de errado ter medo, ser indefeso, desistir de lutar, etc. Mas como Chimamanda Ngozi Adichie diz: o problema de estereótipos não é que eles estejam errados, é que eles se tornam a história única. Ou seja, não é que um modo de mostrar seja errado e o outro certo. O problema é quando apenas um modo é mostrado. E é bizarro se a gente pensar no quanto as mulheres são sempre, a um ponto exaustivo, mostrado como a pessoa que não pode fazer nada. Enquanto os homens têm essa abordagem da Raven – em que fazem de tudo, mas estar em apuros? Ser indefeso? Naaah.
Eu já gostava de The 100 e da Raven, mas depois de parar pra pensar: essa representação dela é MUITO importante.
2- Alif, O Invisível – o mundo real não é desculpa
Eu não sei nem dizer exatamente o ponto problemático do livro. É só que o protagonista (homem) tem uma namorada – a garota bonita e rica – e é abandonado por ela. Aí ele encontra uma outra garota – feia, religiosa – e aprende a gostar dela. Por causa da religião, o romance não é muito físico, é mais dentro dos gestos simbólicos dela. E aí pra o final, uma das coisas que motiva o garoto é que se não a reencontrasse ela passaria a vida inteira sem casar, porque ele a viu sem o véu, o que significa que ela só aceitaria se casar com ele, etc. É basicamente “tenho que sair daqui porque ela não vai ter mais homem nenhum se não for eu.”
Essa transição do romance de uma pra outra é bem questionável, somado pelo fato de que o garoto no início é muito egoísta/dramático/imaturo/machista. E isso no final de “sou o único homem daquela mulher” me deixou com 50 pés atrás.
Mas aí… na hora de comentar, eu senti que não podia criticar exatamente. Por que? Porque por mais que você tenha coisas potencialmente problemáticas 1) mulher que é só daquele homem 2) um garoto machista 3) desvalorização da primeira mulher que faz sexo 4) valorização da garota com “pudores”, isso é desenvolvido em um contexto claro e, em nenhum momento, coloca a mulher sem tomar as próprias escolhas.
Pelo contrário, seguir a religião daquela maneira é uma escolha da garota, ela agir daquele modo é uma escolha dela e, basicamente, esse modo de pensar dele no final é feito mais com respeito. Aliás, a garota que escolheu se mostrar pra ele, a garota que o escolheu. Não foi tipo ‘por acaso, agora temos que nos casar’, é mais “ela me escolheu, ela me ama”.
Essa parte do sexo, sobre isso eu acho que pegou um pouco mal, mas o livro tem mulheres o bastante e fala sobre sexo de modo natural o bastante pra ficar claro que cada uma delas decide o que faz com o próprio corpo.
E é genial. Porque uma das desculpas pra mostrar merda é que “é realista, de acordo com a época” e apenas: não. Alif, o Invisível mostra uma cultura – adivinha só: real! – que de muitas maneiras é machista. Eu acho, sério, que uma das razões pra o protagonista não ser mulher é simplesmente porque essa história não poderia acontecer nessa cultura. Mas mesmo com tudo isso, o respeito e a capacidade de tomar as próprias decisões ainda estão lá. Inclusive, vai além e aponta o machismo e diferença.
Eu não sou segura 100% com Alif, talvez tenha algum problema que eu não tenha percebido. É um pouco difícil traduzir os costumes culturais aos quais eu não sou familiar. Vai que eu to relativizando demais? Mas de uma forma ou de outra, ainda é um avanço. E, no mais, serve pra mostrar que você pode mostrar coisas problemáticas – e reais! – sem que isso signifique reproduzir porcaria e estereótipos ruins.
3- Arrow descontruindo a síndrome do herói salvador
Em histórias de super-heróis (que quase sempre são homens) nós temos a famosa síndrome do herói salvador: ele quer proteger todo mundo. ele quer proteger todos ao seu redor. revelar a identidade por trás da máscara é um risto para as pessoas próximas. E, como ele é o herói da história, normalmente o poder de salvar o dia fica nas mãos dele.
Só que isso cria estereótipos muito ruins. De um lado, o herói é sempre homem. Do outro, a pessoa próxima importante acaba sendo sempre mulher. E aí nós somos obrigados a ver repetidas vezes o homem salvando o dia e a mulher reduzida a esse papel de indefesa. Às vezes mesmo que a mulher não seja (olá, Viúva Negra; olá, Agente Carter), essa ainda é a história dele – e ele é que tem o poder de salvar.
Tipo, é algo frustrante, porque não dá pra argumentar direito. É querer comparar que o Super-Homem – um alienígena indestrutível que voa e tem outros poderes sobrenaturais – com a Lois Lane – uma humana jornalista que é como uma pessoa comum. Se ele chegar e falar que é melhor deixar pra ele enfrentar o vilão, não tem nem como discutir.
Mas às vezes o que acontece não é tão lógico assim. Tipo no Espetacular Homem-Aranha 2 o Peter Parker tentando impedir a Gwen Stacy de se meter em um assunto que ela, como cientista, poderia muito bem ajudar.
Aí você tem Arrow, mais uma história de super-heróis, onde o Arqueiro Verde é logicamente o melhor de todos, só que com um elenco cheeeio de mulheres. Já ouvi tanto o Oliver Queen (Arqueiro Verde) vir com esse disco arranhado de “eu estou fazendo isso pra te proteger” que já assisto a série com a mãe na testa fazendo facepalm. (ok, não. mas eu já mudei o nome dele para Drama. sabe, Drama Queen) E inevitavelmente, esses conflitos do herói protetor aparecem.
De um lado, o óbvio – Oliver é a pessoa certa e tem mais conhecimento, ainda mais pelo fato de que tem o passado secreto dele, que eles podem usar pra justificar qualquer coisa. Do outro: OLIVER, DEIXA A MOÇA FAZER O QUE QUER.
E agora na 3ª temporada isso tá maravilhoso. Porque os personagens já se desenvolveram – e tem uma quantidade de vezes que você pode colocar uma mulher em risco até ela decidir que vai lutar contra. Resultado: toda mulher na série já tem experiência.
Pera, FIQUEI ANIMADA. Porque é muito legal como eles vão desconstruindo isso de mulher indefesa.
A primeira coisa marcante que eles fizeram foi na 2ª temporada, remarcando que o Diggle e a Felicity não trabalham para o Oliver – eles são parte de uma equipe de super-heróis do arqueiro. Inclusive, a chamada no inicial de todo episódio na S3 passa a ser algo tipo “eu sou o arqueiro e tem essas pessoas que decidiram buscar justiça comigo”. Isso fica claro numa missão perto da finale, quando a Laurel quer ir com o Oliver e começa o discurso “é melhor você ficar aqui, protegida, etc”. Aí a Laurel pergunta: “E por que eles [Felicity e Diggle] estão indo então?” e o Oliver responde que é porque eles estão nisso juntos.
É muito bom como nesse final de temporada até a Felicity, que é hacker e não lutadora, está por dentro dos planos e vai fazer as coisas lá na rua. Inclusive, ela é crucial numa batalha física pra vencer o vilão da história.
A quantidade de mulher em Arrow é tanta, que eles conseguem fazer a separação sem que seja uma questão de gênero. Primeiro, já tem o Roy que assim como a Laurel tenta segui-lo, e o Oliver trata do mesmo modo. Depois vem a Canário Negro, que em um piscar de olhos entra pra o time do Arrow, porque é óbvio que ela tem treinamento e sabe o que fazer. E aí você ainda tem várias mulheres (Nyssa, Caçadora, Amanda Waller e a mulher do Diggle), que são treinadas para matar e sabem fazer isso, entrando em ação sem o Oliver ter que dar aula. Ah. E o próprio Oliver aprendeu a usar arco e flecha com uma mulher.
Mas como se isso não fosse o bastante, as mulheres sem preparo não ficam em silêncio. Eu adoro a Laurel, porque ela é bem “ok, pena que você não manda em mim, vou lá mesmo assim”. Na finale da S2 salva o Oliver e ganha uma mini-aula de arco e flecha. Na S3 está decidida a fazer justiça com as próprias mãos – e está treinando mesmo ouvindo do Oliver e do pai que não. E a série parece bem consciente disso, porque já teve vários discursos de “I’m my own person” (que em português é tipo “eu sou uma pessoa independente e tomo as minhas próprias decisões”) pra o Oliver.
A jornada da Thea também, e a própria Felicity parece estar aprendendo alguns passes de luta pra se defender. Inclusive, eles jogam com o fato de que as pessoas não esperam que uma garota comum vai saber se defender. O que eu não sei se é bom ou ruim, mas é um soco na cara toda vez que elas provam o contrário.
Então através da diversidade de personagens, eles conseguem desconstruir a ideia de que o problema da síndrome de protetor é com mulheres indefesas, mas sim com pessoas de modo geral que não passaram 5 anos numa ilha virando um super-herói ou não foram picadas por uma aranha radioativa. E, de quebra, eles colocam essas personagens mulheres sendo donas das próprias escolhas e aprendendo a lutar, se for o caso. Ainda chamam atenção em cena sobre essa síndrome de proteção.
Pera, o que isso tem a ver com o como faz ser o diferencial?
Pelo fato de que o Oliver continua sendo o herói protetor. Acho que é até difícil você ter um herói que não se importa com a segurança dos outros. (não faz nem sentido isso) Mas é feito de um jeito que não desvalida a capacidade da mulher de se proteger.
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Acabou que os 3 exemplos são em relação a mulher e eu nem tinha percebido. Meu radar é claramente focado. Meu cérebro também já está trabalhando em discordar de mim mesma e mostrar que o que você mostra também importa, porque… pra que concordar comigo, né?
E o lembrete aqui que isso não é uma lista de regras do que fazer ou não. É uma reflexão sobre como certos elementos são usados e como a parte ruim não é a coisa em si, mas o como é feito que reforça uma imagem negativa. Ruim por que? Negativo por que? Do meu ponto de vista, nos 3 casos mostrados (assim como Game of Thrones) é ruim porque limita a forma como nós vemos um gênero (no caso, o feminino), a um ponto de influenciar como na vida real enxergamos as pessoas e pensamos no que podemos ser. E cada caso é específico, é claro. No caso de estupro, por exemplo, ainda é feito de um jeito que faz parecer que homens não são estuprados, o que é uma mentira perigosa. Então se tá oprimindo pessoas e escondendo parte da realidade, eu acho que é ruim. E, por isso, eu valorizo histórias como essas (The 100, Arrow, Alif, o Invisível) que se esforçam para mostrar outras realidades e possibilidades.
flw vlw
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